quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021

MARCELINO DA MATA

 OPINIÃO

Marcelino da Mata e a memória selectivade Portugal

CONTEÚDO EXCLUSIVO

A democracia portuguesa criou uma história oficial e entrincheirou-se nela. Marcelino da Mata não cabia lá dentro. Morreu semi-desconhecido, até ao dia em que alguém tenha a coragem de sair da trincheira para contar a sua história, como ele merecia e nós merecemos.

João Miguel Tavares

13 de Fevereiro de 2021, 0:00

Marcelino da Mata morreu na quinta-feira, aos 80 anos de idade, de covid-19. Os telejornais ignoraram a notícia. A maior parte dos portugueses não faz a menor ideia de quem foi Marcelino da Mata. Há uma forma particular de pobreza que afecta este país – a pobreza da nossa memória histórica, demasiado selectiva e formatada, que conduz à ignorância generalizada sempre que falamos de factos ou de pessoas que não encaixam na historiografia oficial do regime. Marcelino da Mata foi colocado do lado de fora da história da democracia portuguesa, e por isso morreu sem que o seu nome e a sua vida extraordinária fossem integrados na memória colectiva.

Público · Marcelino da Mata e a memória selectiva de Portugal

Há dois anos escrevi sobre Marcelino da Mata, o que deu origem a uma resposta de Vasco Lourenço e a uma réplica da minha parte. Na altura recebi dezenas de mails de leitores, a maior parte deles oriundos de antigos combatentes, alguns dos quais tinham conhecido Marcelino da Mata na Guiné. Havia um pouco de tudo nessa correspondência, desde gente que o considerava um herói português e relembrava os seus feitos, até pessoas que entendiam, à semelhança de Vasco Lourenço, que se tratava de um criminoso de guerra. Uns queriam enaltecê-lo, enquanto militar mais condecorado do exército português; outros acolhiam a argumentação de Lourenço, de que há “actos que deveriam enterrar-se de vez”, encontrando virtudes no esquecimento selectivoda guerra colonial.

Quer Marcelino da Mata tenha sido um herói, quer tenha sido um criminoso de guerra, quer tenha sido as duas coisas, o que importa é que a sua vida e as suas acções são uma grande história

Este desejo de esquecer é compreensível do ponto de vista pessoal, mas é obviamente inaceitável do ponto de vista colectivo. Para a minha geração, nascida na década de 70, e para as gerações posteriores, a guerra colonial é matéria dos livros de História, e quer Marcelino da Mata tenha sido um herói, quer tenha sido um criminoso de guerra, quer tenha sido (parece-me o mais provável) as duas coisas, o que importa é que a sua vida e as suas acções, na dúzia de anos em que andou a combater na Guiné, são uma grande história, que rompe com as interpretações primárias dos conflitos coloniais, e que singulariza essa complexidade. As grandes histórias existem para serem contadas e integradas no imaginário popular.

Como se explica, então, que Marcelino da Mata seja uma figura quase desconhecida, apenas resgatado na hora da morte por uma breve nota da Presidência e pelo pedido do CDS para que se decretasse luto nacional e funeral de Estado? Porque o seu perfil é triplamente incómodo para aquilo que se impôs como a narrativa oficial do Estado Novo, da guerra colonial, da descolonização ou das conquistas de Abril. Marcelino da Mata foi: 1) um negro que lutou ao lado dos portugueses na guerra colonial; 2) um herói do Estado Novo; 3) um militar barbaramente espancado por militares de extrema-esquerda ligados ao MRPP, em Lisboa, já em plena democracia. É um triplo desconforto, triplamente silenciado.

Aquilo que uma sociedade adulta deveria perceber – lição essencial em tempos maniqueístas – é que é perfeitamente possível alguém ser herói e ser vilão; um regime ser racista e oferecer a um negro as mais altas condecorações; um guineense preferir Portugal ao PAIGC; uma revolução libertadora torturar tão barbaramente quanto uma ditadura; e por aí fora. A democracia portuguesa criou uma história oficial e entrincheirou-se nela. Marcelino da Mata não cabia lá dentro. Morreu semi-desconhecido, até ao dia em que alguém tenha a coragem de sair da trincheira para contar a sua história, como ele merecia e nós merecemos.

 

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