sábado, 6 de fevereiro de 2021

 

JÁ ACEITAMOS, RESIGNADOS, O DECLÍNIO DA DEMOCRACIA?


Embora não esconda alguma desconfiança sobre os critérios utilizados, tenho de reconhecer que o Global Democracy Index, produzido anualmente pela Economist Inteligence Unit, constitui, à falta de melhor, um bom indicador sobre o estado da democracia no mundo

O seu mais recente relatório não deixa margem para dúvidas quanto ao diagnóstico: a democracia retrocedeu, globalmente, em 2020. 

Muito por causa das medidas de exceção que tiveram de ser tomadas em diversos países democráticos em relação à pandemia, mas também porque o sentimento generalizado de que os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos podem, afinal, não ser percecionados de uma forma tão especial como a que existia há ainda bem poucos anos – nem sequer, o que é pior, como essenciais para o desenvolvimento e o bem-estar das populações
“Confrontados com uma doença nova e mortal para a qual não temos imunidade natural, muitas pessoas aceitaram perder temporariamente a sua liberdade como forma de evitar uma perda catastrófica de vidas”, escreveu a revista The Economist, a explicar algum do retrocesso dos valores democráticos no mundo. 
No entanto, há algo de mais profundo a acontecer e que, na verdade, pode não ter nada a ver com a pandemia: num tempo de indignações por tudo e por nada, em especial nas redes sociais, já ninguém se mostra autenticamente revoltado quando assiste, por exemplo, à repressão dos manifestantes russos que exigiam a libertação do opositor Alexey Navalny ou ao golpe de Estado na Birmânia, este perpetrado pelo mesmo tipo de homens que, durante décadas, isolaram e empobreceram o país sob o jugo de uma selvática ditadura militar.

 Em muitos casos, passámos a achar normal que estas situações ocorram e… ponto final – pois temos outras coisas (menores) com que nos indignar. 
A situação chegou a tal ponto que, num artigo de opinião publicado no The Telegraph, o antigo líder do partido conservador britânico, William Hague, viu-se obrigado a lembrar que “nos mais recentes estudos de opinião a nível global já se nota, entre os jovens, uma crescente perda de fé na democracia” 
“Mesmo em países com tradições democráticas com décadas, começa a ser cada vez mais limitado o espaço para quem pretende fazer oposição aos governos”, sublinhou. 

O que pode fazer Joe Biden?


É também cada vez mais consensual que os anos de Trump na Casa Branca contribuíram para a descredibilização da democracia e, em simultâneo, para a proeminência de líderes fortes e autoritários nas mais diversas latitudes, desde a China à Rússia, passando pelo Brasil, a Turquia, as Filipinas, mas também em nações europeias como a Hungria e a Polónia. 
Desde a sua eleição, Joe Biden já percebeu que vai ter de centrar neste tema grande parte do seu discurso público, em especial depois da invasão do Capitólio por apoiantes de Donald Trump, a culminar semanas de ataques ao processo eleitoral e às instituições democráticas.  
Conforme escreveu o The Washington Post, “num discurso bem elaborado e eficaz no Departamento de Estado, o Presidente Biden mostrou, esta semana, na sua primeira grande intervenção sobre a nova política internacional dos EUA, como a defesa da democracia no país será determinante para aquilo que os EUA podem significar a nível mundial."
Para Biden, é bem claro o desafio central: “A liderança americana deve enfrentar este novo momento de avanço do autoritarismo, incluindo as ambições crescentes da China de rivalizar com os EUA e a determinação da Rússia em prejudicar e perturbar a nossa democracia".

Ao contrário de seu antecessor, que segundo o mesmo jornal procurou a aprovação dos ditadores, Biden declarou que os EUA devem ter uma diplomacia enraizada nos valores democráticos de maior tradição na América: "defesa da liberdade, promoção de oportunidades, defesa dos direitos universais, respeito do Estado de direito e tratamento de todas as pessoas com dignidade”. 

Economia vs. ideologia


A dúvida reside em saber qual a distância que vai entre as palavras e as ações. E, na verdade, tentar perceber se ainda há alguma maneira de contrariar o avanço do autoritarismo (uma tarefa que exige muito mais do que a mera procura de pistas na imprensa estrangeira, como é o propósito desta newsletter). 

No entanto, há sintomas que, sem grandes enviesamentos de opinião, podemos encontrar naquilo que vai sendo publicado pelo mundo e que nos ajudam a compreender algum do desinteresse pela democracia. 

Um deles creio que salta à vista: a preocupação da maior parte dos governos de todo o mundo de privilegiarem as relações económicas à frente das diferenças políticas ou ideológicas - como se viu, recentemente, no acordo comercial entre a União Europeia e a China
Aquilo que se está a assistir em relação ao golpe de estado na Birmânia, pondo fim a anos de transição democrática, é também disso revelador, em especial quando comparado com o que se observava há uns anos, nos tempos em que Aug San Suu Kyi era incensada, no Ocidente, como rosto da liberdade, com um estatuto semelhante ao de Nelson Mandela ( inspirando até a uma canção dos U2).  
É verdade que Joe Biden, no mesmo discurso, condenou o golpe militar, com uma frase que tanto tem ressonâncias para o interior dos EUA como para o resto do mundo: “Numa democracia, a força nunca deve tentar anular a vontade do povo ou tentar apagar o resultado de uma eleição”. Mas a grande questão, como pergunta Charu Sudan Kasturi, editor da Ozy, é a de saber se uma simples condenação é ou não suficiente para alterar o estado das coisas
“Uma ação vigorosa contra a Birmânia estaria de acordo com a defesa dos princípios pró-democráticos que Biden e a sua equipa assumiram desde o início da sua campanha para a presidência”, escreve aquele articulista. “Só que as sanções contra a Birmânia podem ter um custo - para os EUA. Por isso, a maneira como a equipa de Biden lidar com a crise de Myanmar dirá ao mundo se o atual ocupante da Casa Branca tem a habilidade diplomática necessária, além de boas intenções, para realmente conseguir o que deseja.”

O exemplo da Birmânia


É aqui que entra a geopolítica. E, nesse campo, Charu Sudan Kasturi não tem grandes dúvidas: antes de exprimir qualquer opinião, é preciso perceber que tipo de minas terrestres a América corre o risco de pisar, se decidir impor sanções à Birmânia. O seu aviso baseia-se no facto de, há muito, a China ter apoiado os militares birmaneses, nomeadamente no fornecimento de sistemas sofisticados de defesa – aliás, como sempre fez a Rússia.
“O general Min Aung Hlaing, chefe do exército de Myanmar, nunca teria avançado para o golpe de Estado sem ter a confiança de que Pequim - pelo menos discretamente - o apoiaria”, escreve. “O seu cálculo revelou-se correto”, adiantou. “Até agora, tanto a China como a Rússia recusaram-se a condenar o golpe, preferindo usar, ambos, uma linguagem estereotipada para pedir paz e estabilidade na região”.
Enquanto isso, no entanto, cresce a contestação e a resistência entre a população da Birmânia – um país ainda em construção, segundo a análise de Thant Myint-U, historiador birmanês, neto do antigo secretário-geral das Nações Unidas, U Thant (que desempenhou o cargo durante uma década, entre 1961 e 1971, reflexo dos tempos em que a Birmânia era, nos após imediatos à II Guerra Mundial, o país mais educado e desenvolvido do Sudeste Asiático – hoje é um dos mais pobres e desiguais do mundo), já explanada em artigos no New York Times e na Foreign Affairs.
O que se assiste é o regresso aos tempos mais ferozes da junta militar que governou o país - com um povo a tentar organizar-se para resistir à opressão. 

Desta vez, com “apagões” sucessivos da internet, conforme denunciado pela organização NetBlocks – uma prática cada vez mais comum em diversas latitudes, desde a Índia ao Congo, passando pela Rússia, Uganda, Paquistão e até os EUA. Mas a pergunta fica sem resposta: quem se indigna, verdadeiramente, com tudo isto? 

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