segunda-feira, 27 de dezembro de 2021

O SNS

SNS: E agora?

Já entrámos, na prática, no período eleitoral e não será difícil prever que até às eleições no final do próximo mês, a Saúde será, inevitavelmente, o sector mais em foco na discussão política.

Alguns quadrantes políticos e ideológicos têm procurado fugir a pronunciar “serviço nacional de saúde”, tal é a aversão, e têm procurado impor no vocabulário corrente a sua preferência por “sistema nacional de saúde”.

São duas realidades diferentes.

O sistema nacional de saúde é o conjunto das instituições prestadoras de cuidados de saúde ao nível público, privado e de carácter social.

O serviço nacional de saúde é o conjunto dos serviços públicos de saúde, constituindo o instrumento operacional do direito constitucional à saúde de todos os cidadãos, independentemente das suas condições socioeconómicas.

E apesar de existir um serviço nacional de saúde (SNS), o sistema de saúde no nosso país sempre possuiu claras características de um sistema misto.

Também a nível da gestão tem sido desenvolvido um processo de mistificação visando camuflar os reais objetivos de perversão dos aspetos essenciais do SNS.

Neste caso, a propaganda dos círculos de interesses económicos privados tentam fazer crer que tanto faz se a gestão é pública ou privada.

Ora, estamos novamente perante duas realidades bem distintas

A gestão pública e a gestão privada têm finalidades diferentes.

A gestão pública tem como foco fundamental o bem comum da sociedade e a sua evolução civilizacional, a gestão privada está vocacionada para o lucro, o consumo e o negócio.

A gestão pública existe para atingir uma missão que é considerada socialmente valiosa, a gestão privada existe para maximizar o património dos acionistas, tendo com critério de bom desempenho o resultado financeiro.

A gestão pública visa a criação de valor público e a gestão privada visa obter mais dinheiro para os seus acionistas e proprietários, mediante a produção de bens e serviços vendidos com lucro.

As políticas sociais públicas foram ao longo do século passado o principal veículo impulsionador do desenvolvimento civilizacional.

O progresso e o desenvolvimento de qualquer país são incompatíveis com a pobreza e a degradação da dignidade humana dos seus cidadãos.

As políticas sociais públicas foram, sempre, uma marca distintiva dos países civilizados e virados para o progresso social e económico.

Neste contexto, a Saúde é desde há largos anos considerada, no plano internacional, um elemento imprescindível no fortalecimento da coesão social e um fator de equidade para um desenvolvimento sustentável de qualquer sociedade moderna.

O facto do nosso SNS possuir como uma das suas características essenciais o princípio da universalidade, tem contribuído para o fortalecimento de uma cidadania ativa e do princípio da inclusão, bem como tem promovido uma cultura pública de redistribuição e de solidariedade, gerando a coesão social.

Sendo a coesão social entendida como a capacidade de uma sociedade para gerir a mudança e o conflito mediante uma estrutura democrática de distribuição dos seus recursos sócio-económicos, sócio-políticos e sócio-culturais, torna-se facilmente visível que quando a coesão social entra numa fase de debilidade é inevitável o aparecimento de situações de violência, de instabilidade política e de crescimento dos conflitos sociais, tornando-se impossível assegurar, em democracia, qualquer tipo de crescimento económico num quadro geral de conflito e de instabilidade.

A exclusão social e a iniquidade na distribuição de bens e de oportunidades são sempre ameaças graves à coesão social.

E quando a coesão social fica debilitada é o próprio regime democrático que começa a estar em causa.

Apesar da brutalidade da pandemia por Covid 19, o nosso país tem conseguido fazer uma gestão altamente qualificada por parte das várias instâncias governativas que, aliás, tem sido alvo de múltiplos elogios a nível internacional.

É hoje amplamente reconhecido que os resultados obtidos no combate à pandemia tiveram na atividade do SNS o seu fator decisivo.

Estamos hoje numa situação decisiva para o futuro do SNS, que não permite mais esperas. E as próximas eleições legislativas deveriam constituir o momento clarificador dos programas que têm como prioridade a construção de uma nova etapa de redinamização do SNS, em oposição aos que visam, de formas mais ou menos encapotadas, fazer da Saúde um qualquer bem deconsumo dependente do nível socioeconómico de cada cidadão.

Para proceder à urgente redinamização do SNS, colocam-se, na minha perspetiva, as seguintes medidas prioritárias:

1 – Uma política laboral, com profissionais motivados e envolvidos nos objetivos de cada serviço de saúde, como condição determinante para atingir desempenhos globais que solucionem os problemas de saúde das populações.

Numa perspetiva organizacional, os recursos humanos são a componente crítica, sem os quais não é possível realizar as tarefas da organização.

Estas foram, a título de exemplo, duas das conclusões do relatório de especialistas da OMS em recursos humanos em 1989.

Os recursos humanos dos serviços públicos de saúde não podem continuar a ser encarados por grande parte das respetivas administrações como o “inimigo interno” a hostilizar de formasistemática, só para fazerem demonstrações de poder junto de cada tutela que as nomeou.

Não é em função dos resultados obtidos que pretendem impor-se, mas precisamente pela arbitrariedade e pela hostilidade gratuita sobre os recursos humanos que aí desenvolvem a sua atividade profissional.

2 – A implementação de um novo modelo de gestão nos serviços de saúde, que estipule a apresentação regular de contas por parte das administrações, a avaliação dos respetivos desempenhos, bem como o envolvimento dos profissionais nos objetivos assistenciais de cada estabelecimento de saúde. É inadiável acabar com o ambiente de “caserna “ que se vive em múltiplos serviços de saúde e que se tem perpetuado desde a legislação do comissariado político na gestão iniciada em 1988, num governo presidido pelo Prof Cavaco Silva.

3 - Tal como aconteceu com as autarquias, através da Lei das Finanças Locais, para conseguir maior rigor e estabilidade orçamental do seu desempenho, é urgente que seja adotada uma Lei das Finanças da Saúde que defina o regime financeiro do SNS e das unidades públicas de saúde, a dotação de verbas para pagamentos de atividades supletivas de entidades privadas, a autonomia financeira, a criação de um fundo de coesão do SNS e de um fundo de apoio ao SNS, tal com acontece com essa legislação em vigor.

Uma legislação deste tipo na saúde iria obrigar ao desenvolvimento de mecanismos gestionários de maior transparência na transferência de verbas do Orçamento de Estado para a saúde, como são, por exemplo, os contratos-programa e os orçamentos-programa.

Tudo aquilo que não se regenera, degenera!

A hora é de agir, sem desculpas.

A história responsabilizará quem não promover a saúde do SNS.

Mário Jorge Neves

Médico, membro do Observatório de Saúde António Arnaut

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SIM, FOI ESTE ANO...

 

 

  João Pedro Pereira  


 
 
 

27 DE DEZEMBRO DE 2021

 

Sim, foi este ano

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Nos tempos nebulosos da pandemia, é fácil perder balizas temporais, confundir datas e misturar eventos – especialmente numa área como a tecnologia, onde os acontecimentos se desenrolam a uma velocidade difícil de acompanhar e onde algumas histórias roçam a ficção.

Foi este ano que o capitólio dos EUA foi invadido por uma turba que se mobilizou online, levando as redes sociais a suspender a conta de Donald Trump. Foi este ano que novas denúncias sobre o funcionamento do Facebook afundaram ainda mais a reputação da empresa, que acabou por mudar de nome. Foi este ano que Jeff Bezos abandonou a liderança da Amazon e se estreou no turismo espacial. Foi este ano que alguém comprou com criptomoedas uma casa na Madeira, que uma influencer se tentou suicidar em directo, que Mark Zuckerberg pôs meio mundo a falar do metaverso, que a Web Summit regressou ao formato presencial em Lisboa, que a crise dos chips aumentou o preço dos computadores e pôs em causa a produção automóvel. 

Façamos uma breve revista ao ano tecnológico.

Um dia que não se esquece
A ira passou da Internet para a acção física. A 6 de Janeiro, perante um mundo de boca aberta, uma multidão invadiu o Capitólio dos EUA, para tentar evitar a ratificação da eleição de Joe Biden. As redes sociais não são causa única da polarização política, nem dos episódios de Janeiro nos EUA – mas têm sido peças fundamentais no processo. 

Donald Trump usou o Twitter, o Facebook e o YouTube para instigar os seus apoiantes e, mais tarde, para apelar a que fossem para casa. Acabou suspenso daquelas plataformas. Seguiu-se um debate sobre se empresas de Internet deveriam poder silenciar um político. Mais recentemente, Trump anunciou a sua própria rede social, chamada Truth Social.

O regresso da Web Summit
Depois de uma edição online em 2020, a Web Summit regressou ao formato presencial, embora com menos participantes (há quem prefira assim). O efeito da pandemia na afluência já levou o Governo a rever em baixa o retorno do evento. 

Nesta edição, uma empresa portuguesa venceu o concurso de startups: a Smartex quer reduzir o desperdício na indústria têxtil com um sistema de câmaras, luzes e algoritmos que vigiam o processo de fabrico à procura de defeitos. É a primeira vez desde que a Web Summit está em Lisboa que é distinguida uma startup portuguesa. 

Num assunto relacionado: o hub do Beato, um enorme espaço em Lisboa destinado sobretudo a empreendedores e startupscontinua por abrir. O projecto está agora nas mãos de Carlos Moedas, um autarca que tinha como medida programática transformar a cidade numa "fábrica de unicórnios". Boa parte dos espaços no hub já estão contratualizados e devem arrancar em 2022.

Fuga para a frente?
Em Setembro, uma investigação do Washington Post trouxe a público nova informação sobre o funcionamento interno do Facebook. Os ficheiros foram entregues ao jornal por uma antiga funcionária, Frances Haugen, que depois deu múltiplas entrevistas e palestras sobre os malefícios da rede social

Entre outras revelações, soube-se que assessores políticos criavam conteúdo polarizador porque o Facebook incentivava a isso; que um grupo de utilizadores VIP estava, na prática, isento do cumprimento das regras; que a empresa sabia que o Instagram era uma plataforma nociva para muitos utilizadores e, em particular, para raparigas adolescentes (o Facebook acabou por pôr um travão no plano de lançar um Instagram para crianças). 

Os executivos decidiram entretanto mudar o nome da empresa para Meta, que passa assim a ser a proprietária das várias plataformas (Facebook, Instagram e WhatsApp são as maiores). O nome aponta para o conceito de metaverso, um mundo digital paralelo, que Zuckerberg disse ser a sua visão para o futuro da vida online e que é provavelmente o jargão tecnológico de 2021. 

Mudanças no topo
Jeff Bezos, fundador da Amazon em 1994, deixou o cargo de CEO. A liderança ficou entregue a Andy Jassy, que está na empresa desde 1997. 

Em Julho, o magnata fez uma curta viagem ao espaço, num foguetão da sua empresa Blue Origin. Richard Branson, o dono da transportadora aérea Virgin e da empresa de exploração espacial Virgin Galatic, tinha feito mais ou menos o mesmo poucos dias antes. 

Também o CEO do Twitter, Jack Dorsey, abandonou o cargo. Dorsey pretende dedicar-se à Block, uma empresa de pagamentos e serviços financeiros (que antes se chamava Square e é dona da plataforma homónima). "Não há muitas empresas que cheguem ao nível do Twitter. E não há muitos fundadores que escolhem a empresa em vez do seu ego", escreveu Dorsey.

Aquele comentário pode ser interpretado como um remoque a Mark Zuckerberg, que permanece CEO do Facebook apesar da contestação – a este respeito, argumentei aqui que Zuckerberg é uma espécie de ditador preso na sua própria rede; Rui Tavares chamou-lhe um "rei-lua".

E ainda…
A União Europeia tem em curso um processo legislativo para garantir aos consumidores o direito a repararem os aparelhos que compram. A Apple já deu os primeiros passos, ao disponibilizar manuais, ferramentas e peças para alguns modelos de iPhone. É uma boa notícia, numa década que tem o ambiente como uma das grandes procupações.

As criptomoedas têm testado as águas do sistema financeiro tradicional contra o qual a própria bitcoin foi criada. Ainda assim, o futuro deste tipo de activo continua incerto. Legisladores e reguladores têm as criptomoedas no radar e, na União Europeia, as transferências acima de mil euros vão passar a ser alvo de maior escrutínio. Por cá, houve quem recorresse a criptomoedas para comprar uma casa na Madeira (a imobiliária facilitou o processo de câmbio, mas a transacção foi oficialmente feita em euros).

No TikTok, a rede social chinesa que está a ser um fenómeno de popularidade entre os mais novos, uma utilizadora tentou suicidar-se em directo. Acabaria por morrer no dia seguinte, no hospital, mostrando que as novas redes estão a repetir os erros das mais antigas.

A escassez de chips reverberou por vários sectores, da electrónica de consumo à indústria automóvel. Em Outubro, tinha causado uma quebra de cerca de 18% na produção da Autoeuropa, a fábrica da Volkswagen em Palmela.

A Fundação Champalimaud, em Lisboa, anunciou a criação de um centro dedicado à inteligência artificial. Está previsto um investimento de 35 milhões de euros.

Em tempos de fake newsa confiança nas notícias em Portugal subiu, de acordo com o relatório anual do Reuters Institute. Este indicador permanece bem acima da média dos 46 países analisados. É na Finlândia que as pessoas mais confiam no jornalismo.

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Esta newsletter volta para a semana, no arranque de 2022, com uma reflexão sobre a chamada Web3, que alguns dizem ser a próxima versão da Internet. Bom Ano!

 
 
 

A VIDA MILITAR

 

Fizeram serviço militar?

Este mês o Diário de Notícias cumpre 157 anos. Um século e meio de vida, em que a história do jornal se entrelaçou com a história do país. Para celebrar o aniversário, o DN organizou uma cerimónia intimista - quase, porque o online deu asas ao momento -, para a qual convidou o vice-Almirante Gouveia e Melo. Grande escolha, pois, na conversa que manteve com Rosália Amorim, deixou-nos um par de pistas para o futuro do país, que eu retomo aqui para lhes dar a minha interpretação.

Gouveia e Melo fala com a tranquilidade de quem não anda à cata de votos. O que é uma vantagem, pois além de dizer coisas mais refletidas, é ouvido com atenção. Sendo um militar altamente qualificado, tem um sentido de missão, foco e hierarquia à prova de bala. Falou de vacinação, de mar e de liderança.

"Se tivermos de sair todos desta sala por aquela porta, porque há um incêndio, só o conseguiremos fazer com disciplina. Senão, será impossível cumprir o objetivo." Foi assim que explicou o racional de atuação dos militares. Mais adiante, falou de ambição. De querer pensar mais além, de ter autoconfiança, de acreditar em nós. E de cumprir a ambição com o conhecimento e com a disciplina.

Enquanto ouvia o vice-Almirante, deixei o meu pensamento viajar por Tancos, onde cumpri serviço militar obrigatório. As suas palavras remeteram-me para muito do que ali aprendi: a disciplina que emana da união, o desenvolvimento do sentido de pertença, a ausência de segregação social e o entendimento dos símbolos nacionais. Eram as competências não formais da época, hoje substituídas pelas "soft skills". Entre umas e outras, interponho uma palavra: resiliência. Hoje ensina-se muito, e ainda bem, mas educa-se pouco para a superação.

O tema que me inquieta, bem se percebe, é o do serviço militar, que em Portugal deixou de ser obrigatório em 2004. Para justificar essa decisão, concorrem algumas ideias feitas que têm demasiado de impreciso. Primeiro, a ilusão de que após o fim da guerra fria já não seria preciso manter um aparato de defesa porque as guerras iriam acabar. O que se observa hoje é o contrário. O mundo está mais inseguro. A irrelevância do ponto de vista da defesa significa, por exemplo, deixar de controlar a dimensão oceânica do nosso país.

Um segundo mito é o de que o serviço militar só atrasa a vida dos jovens, retardando a sua entrada no mercado de trabalho. Este equívoco resulta do entendimento de que na escola - secundária ou superior - se aprende tudo o que é necessário para atacar logo o primeiro emprego. A realidade, porém, é bem diversa. Os empregadores querem resistência e superação - a tal resiliência - e perguntam invariavelmente aos candidatos o que fizeram ou sabem fazer para além da escola. Trabalharam nas férias? Fizeram o "gap year"? Aderiram ao voluntariado? Tocaram numa banda? Jogaram numa equipa? Andaram no grupo de teatro? Eu substituiria quase todas estas perguntas por um simples: fizeram serviço militar?

Ainda não me convenceram de que exista um método mais eficaz para dar resiliência aos jovens do que juntá-los aos pelotões de trinta - rapazes e raparigas de todo o país -, vesti-los iguais de verde, pregar na farda um retângulo verde e vermelho, e ensinar-lhes que o dia começa depois de cada um fazer a sua cama.

Seis meses seriam suficientes para fazer jovens mais autoconfiantes, com disciplina, com ambição e que gostem demasiado de Portugal para quererem emigrar. A economia agradeceria, o país ganharia. Voluntário ou obrigatório? No meio estaria a virtude.


Deputado e professor catedrático