sábado, 12 de março de 2022

O RESSENTIMENTO

A Europa e o Mundo estão a viver uma situação que possui diversos pontos de contacto com os

acontecimentos que se produziram após a subida de Adolf Hitler ao poder, em 1933. O desfecho da

1.ª Guerra Mundial servira de impulso anímico para o ajuste de contas que é de esperar de um

partido nacionalista. O ressentimento, tal como o medo, constitui poderoso esteio para a

manipulação de multidões. No caso alemão, a derrota na guerra foi justificada como o resultado de

uma iníqua traição – a célebre “punhalada nas costas” –, à qual se seguiu a humilhação dos pesados

termos do Tratado de Versalhes. No caso italiano, devidamente aproveitado pelo partido de

Mussolini, pertencendo a Itália à coligação vencedora, lançou-se mão de outro slogan – a não

menos célebre “vitória mutilada” –, fundamentado em alegadas humilhações verificadas aquando da

partilha dos despojos de guerra. Em ambos os casos, o ressentimento ali estava para ser empregue

na mobilização das massas.

Na corrida de Hitler para a guerra, o pacifismo dos antigos Aliados e o desejo de que uma nova

guerra não eclodisse sem um motivo forte permitiram ao ditador nazi suplantar sem oposição a

reconstrução das Forças Armadas alemãs, a reocupação da Renânia, a anexação da Áustria, a

absorção dos Sudetas, território checoslovaco, e, logo depois, a ocupação de toda a Checoslováquia.

Aí, os Aliados decidiram que, na próxima vez que Hitler pisasse uma ‘linha vermelha’, iriam para a

guerra. Ainda assim, nas semanas que antecederam o seu início, o Führer “não conseguia

compreender por que razão a atitude britânica tinha agora mudado tão repentinamente da

conciliação para a resistência”.1

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Todavia, no caso de o próximo passo ser para leste da Alemanha, a geografia nada ajudava.

Percebia-se que a vítima seguinte seria a Polónia, país cuja integridade fora garantida pela França e

pela Grã-Bretanha. Mas como é que os Aliados poderiam ir em socorro da Polónia, se a Alemanha a

invadisse, tendo este país de permeio? Não podiam, restando-lhes declarar guerra ao agressor e dar

1 BEEVOR, Antony, A Segunda Guerra Mundial, p. 28.





 

2

início a um pouco entusiasmado ataque à fronteira oeste alemã, no que passaria à história como a

‘drôle de guerre’. Um mau começo que, no entanto, não impediria nova vitória, em 1945. As

trágicas consequências da emergência na Europa, entre guerras, de duas potências de regimes

ditatoriais e nacionalistas levou os Aliados, desta vez, a uma atitude de grande prudência. Em vez

de punirem a Alemanha e a Itália (e o Japão) com a severidade de Versalhes, procuraram apoiar a

construção de regimes democráticos, o que fizeram com assinalado sucesso.

No final da guerra seguinte – Guerra Fria –, que se concluíra com a vitória política dos aliados da

OTAN, não foi possível aplicar inteiramente a mesma receita, dado que, logo a seguir, se deu o

desmembramento da União Soviética, num processo essencialmente interno e num país de

dimensões imensas como é a Rússia. Mas, simultaneamente, havia um conjunto de países que

estavam na esfera de influência da URSS e que viveriam os novos tempos em modo de libertação

do decadente tutor e de opção pela democracia ocidental. Assim, por decisão própria, além da

integração da Alemanha Oriental na República Federal da Alemanha, optaram por regimes

democráticos a Polónia, a Hungria, a Checoslováquia, a Roménia e a Bulgária, tudo países que já

eram independentes entre 1945 e 1991. Além destes, proclamaram a sua independência da URSS a

Estónia, a Letónia, a Lituânia, a Moldávia, a Bielorrússia e a Ucrânia. Destes, os quatro primeiros

optaram também pela adopção de regimes democráticos de tipo ocidental. E, aqui, de novo se

revelou o ressentimento que grande parte das populações desses países sentia em relação à Rússia.2

Logo em Maio de 1990, o presidente Vaclav Havel, da Checoslováquia, antecipou que a OTAN

poderia ser a semente de um novo sistema de segurança europeu, com a extensão da organização ao

Leste da Europa.3 Mas havia ideias bem diferentes. Henry Kissinger, por exemplo, considerava

como melhor solução que os três países centrais – Checoslováquia, Hungria e Polónia – fossem

declarados neutrais, à semelhança da Áustria. Em 10 de Março de 1992, todas as antigas repúblicas

soviéticas foram admitidas no NACC (North Atlantic Cooperation Council), embora sem qualquer

compromisso de futuro ingresso na OTAN.

Na reunião do Conselho do Atlântico de Junho de 1992, em Oslo, o secretário de Estado dos EUA,

Lawrence Eagleburger, aventurou-se a referir que “deveríamos considerar a possibilidade de

estender a Aliança. Para tal, haverá um certo número de condições, a menos importante das quais

não será o empenho na democracia... mas o essencial não é – e, aqui, eram os EUA a falar – que

haja, presentemente, algum entendimento comum sobre esta matéria, mas os EUA sugeriam que,

futuramente, em devido tempo, a Aliança possa ser alargada.”4

Em Setembro de 1993, a posição do presidente

Yeltsin, da Rússia, favorecia outro tipo de solução

para a segurança dos países da Europa Central (os que

haviam saído da órbita da URSS), oferecendo-lhes

garantias através de uma declaração política ou

mesmo de um tratado de cooperação entre a Federação

Russa e a OTAN. O debate sobre a segurança europeia

iria prosseguir mediante a adopção de diversas

medidas, de que logo a primeira seria a Parceria para

a Paz, envolvendo, praticamente, todos os países

europeus.

2 Excluo deste texto o reflexo da desagregação da URSS nos países da península balcânica, por não estarem

directamente ligados aos acontecimentos em curso.

3 SOLOMON, Gerald B., The NATO Enlargement Debate, 1990-1997: Blessings of Liberty, p. 7.

4 Ibidem, p. 19.

3

Contemporaneamente, um outro acontecimento tem lugar na Europa, com consequências várias,

entre as quais algumas no âmbito da segurança – a assinatura do Tratado da União Europeia, em

Maastricht, a 7 de Fevereiro de 1992, e que entraria em vigor em 1 de Novembro de 1993. Deste

modo, a partir da Comunidade Económica Europeia, constituía-se uma nova unidade política, a

União Europeia (UE), a qual, não sendo especificamente uma aliança no sentido estratégico do

termo, não podia deixar de se considerar um bloco político com obrigações de solidariedade entre

os seus membros, favorecendo a sobreposição de interesses entre UE e OTAN. Todavia, como não

se perspectivava para breve a possibilidade de os países de Leste reunirem as condições de adesão à

UE, começou a germinar a ideia de que, como compensação, talvez pudessem aderir à OTAN, ideia

que os EUA trataram de acarinhar.

Apesar da improbabilidade de uma integração próxima, da parte dos países de Leste não tardaram

os pedidos oficiais de adesão à UE – Hungria e Polónia, em 1994, Roménia, Eslováquia, Estónia,

Lituânia e Bulgária, em 1995, e Eslovénia e República Checa, em 1996. Tratava-se, seguramente,

de uma opção quanto ao futuro destes países – a consolidação de regimes democráticos de tipo

ocidental – e da rejeição inequívoca do seu passado como repúblicas socialistas da órbita da URSS.

Mas seria, também, uma demonstração de ressentimento pela sujeição experimentada entre 1945 e

1990.

Entretanto, em 27 de Maio de 1997, é assinado em Paris, entre a OTAN e a Federação Russa, o

Acto Fundacional de Cooperação Mútua, no qual, entre diversas considerações, se realçava:

• Que a Rússia prosseguia a construção de uma sociedade democrática e a realização da

sua transformação política e económica.

• Que a Rússia estava a contribuir para as forças multinacionais na Bósnia-Herzegovina.

• Que, para assegurar as actividades e objectivos deste Acto e desenvolver abordagens

comuns à segurança europeia, a OTAN e a Rússia criariam o Conselho Conjunto

Permanente OTAN-Rússia.5

• Que as provisões deste Acto não confeririam à OTAN ou à Rússia, de qualquer forma, o

direito de veto às acções da outra parte nem afectariam ou restringiriam os direitos da

OTAN e da Rússia a decisões ou acções independentes.

• Que a Rússia estabeleceria uma Missão na OTAN, encabeçada por um representante com a

categoria de Embaixador. Fariam parte desta Missão um alto representante militar e

respectivo estado-maior, para fins de cooperação militar.

• Que os Estados membros da OTAN reiteravam que não tinham a intenção, nem planos, nem

motivos para a instalação de armas nucleares no território dos novos membros, nem

nenhuma necessidade de mudança na atitude nuclear da OTAN ou da sua política nuclear –

e não previam qualquer futura necessidade de o fazerem.6

Quando, recentemente, eclodiu a crise que conduziu à invasão da Ucrânia pelo exército da Rússia,

foi largamente argumentado que essa atitude teria sido provocada, em grande parte, pela extensão

da OTAN aos países que haviam feito parte da ‘esfera de influência’ soviética, entre 1945 e 1991.

Poucas opiniões têm recordado o que fora estabelecido, por mútuo acordo, no documento atrás

citado, muito especialmente a importância decisiva da democratização da Rússia, que, ao invés, se

foi transformando numa ditadura de feição fascista. Ainda assim, não me foi dado ler nenhuma

opinião que afirmasse, sem rodeios, que a Europa teria vivido feliz e em paz se a única extensão da

OTAN tivesse sido a resultante da unificação da RFA, a que correspondeu a integração na

organização do território da antiga RDA.

5 Substituído pelo Conselho NATO-Rússia (CNR) após os ataques de 11 de Setembro de 2001.

6 https://www.nato.int/cps/en/natohq/official_texts_25468.htm

4

Imaginemos, ainda assim, que, de facto, mais nenhum país do antigo bloco soviético tivesse aderido

à OTAN. Esse facto, no entanto, não alteraria o efeito da maior catástrofe geopolítica do século XX,

como se lhe haveria de referir Vladimir Putin, em Abril de 2005. Não houvera, porém, nenhuma

humilhação decorrente de um qualquer “Tratado de Versalhes” imposto pelos “vencedores”, antes

se verificando uma derrota auto-infligida. O que, obviamente, também não alteraria a vontade dos

nacionalistas russos de tudo fazerem para recuperar a sua ‘esfera de influência’. Logo em 1991, se

haveria de destacar na política russa a figura de Vladimir Zhirinovsky “que construiu o seu apelo

eleitoral na base de uma impenitente xenofobia ao estilo da Velha Rússia, afirmando que o povo

russo se havia tornado na mais humilhada nação do planeta”.7 Logo no ano seguinte, Zhirinovsky

estabeleceu estreitas relações com Jean-Marie Le Pen, dando início a uma ideia de aproximação

entre a Rússia e a extrema-direita europeia, que, ao longo dos anos, se foi reforçando.

Prosseguindo a análise desta hipótese, olhemos para o mapa seguinte, onde destacámos a vermelho

os três países bálticos – Estónia, Letónia e Lituânia –, tornados independentes da Rússia em 1991.

Sendo, nesta hipótese, a Alemanha o país da OTAN mais próximo, como é que se aplicaria a este

conjunto de pequenos países o princípio da “indivisibilidade da segurança” relativamente ao seu

poderoso vizinho russo? Certamente que ninguém se lembraria de tal princípio, ficando os três

países do Báltico inteiramente à mercê da Rússia. Esse cenário tornaria facilmente exequível,

porque não eram países da OTAN, o controlo político da Estónia, Letónia e Lituânia pela Rússia,

constituindo-se, juntamente com a Bielorrússia e Ucrânia, o território-tampão que materializaria a

desejada “esfera de influência” da Rússia (mapa seguinte).

Voltando à realidade do tempo presente, revejamos, agora, o cenário mundial dos anos que

antecederam a actual crise, salientando os seguintes aspectos:

• A facilidade com que, através de operações dissimuladas nas redes sociais, a Rússia tem

influenciado as eleições americanas e o referendo sobre o Brexit;

• A notória falta de vontade política da maior parte dos países europeus em atribuir recursos

financeiros adequados às suas forças armadas;

• A OTAN a ser considerada uma organização obsoleta pelo presidente Trump, e em ‘morte

cerebral’ pelo presidente Macron;

• A progressiva diminuição da presença militar americana na Europa;

• A Europa fragilizada pela saída do Reino Unido da União Europeia;

• Os laços de cumplicidade económica, sempre crescentes, entre a Rússia e a UE, deixando

esta numa forte dependência energética;

• A Alemanha, maior potência económica e populacional da UE, tendo desde há 30 anos

abdicado de ser uma potência militar e, pelo contrário, forjado fortes laços de dependência

económica da Rússia;

7 JUDT, Tony, Postwar, p. 1086.

5

• A fragilidade estratégica dos EUA, expressa na divisão interna entre os dois maiores

partidos, a que se somou o enorme fiasco da retirada do Afeganistão;

• A débil reacção do Ocidente às acções militares da Rússia na Geórgia, no Donbas e à

anexação da Crimeia;

• A simpatia, ainda remanescente no Partido Republicano dos EUA, para com a figura de

Vladimir Putin;

• A notória prioridade que os EUA dão, presentemente, ao que antevêem ser a ameaça da

China.

A partir de 2014, a agudização das relações entre a Rússia e a Ucrânia, com a anexação da Crimeia

e a rebelião no Donbas, levou a OTAN a destacar algumas forças para os países da organização

mais próximos da Rússia, de modo a garantir que qualquer agressão encontrasse no terreno forças

da aliança que garantissem o imediato empenhamento colectivo.

Foi perante este cenário de decadência e fragilidade do Ocidente que o presidente russo, Vladimir

Putin, deu início a uma crise internacional em torno da situação na Ucrânia, alegando, pelo

contrário, que a Rússia se encontrava ameaçada pelos EUA e pela OTAN. Na realidade, Vladimir

Putin aproveitou o momento de debilidade estratégica do Ocidente para se declarar ameaçado. Para

sublinhar, ainda mais, a fraqueza do Ocidente, os dirigentes dos países da OTAN, do Reino Unido e

da UE, apressaram-se a declarar que, em caso de guerra, não enviariam tropas para combater ao

lado das forças ucranianas.

Apesar da incoerência da argumentação, sempre subsistem movimentos de opinião que procuram

transferir as culpas para o agredido, expressando sem cessar a voz do seu infindável ressentimento.

Da acumulação de derrotas – ideológicas, geopolíticas e eleitorais – não retiram outra conclusão

senão a sua sempiterna clarividência.

A História não deixará, porém, de pedir contas pesadas ao Ocidente, embora por razões mais

relacionadas com a cumplicidade económica com a Rússia e a imprudência estratégica a ela

associada. A postura estrategicamente não-interventiva da OTAN, enquanto o mundo assiste, em

directo, ao drama da Ucrânia, vai tornar-se de penosa recordação, a menos que o desenvolvimento

dos acontecimentos venha a revelar um caso ao qual possa aplicar-se o preceito napoleónico que

recomenda:

Nunca interrompas o teu inimigo quando ele estiver a cometer um erro.

David Martelo – 09 de Março de 2022

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