Aterradora profecia de António
Barreto
Publicado por Mtv24 Redação em 1 de Outubro de 2020 | 21:08
Uma profecia feita com a lucidez e o realismo de António
Barreto. A LER com atenção, pois é deveras preocupante e já
se encontra em desenvolvimento
Republicanos, corporativistas, fascistas, comunistas e até democratas
mostraram, nos últimos séculos, que se dedicaram com interesse à revisão
seletiva da História, assim como à censura e à manipulação.
É triste confessar, mas ainda estamos para ver até onde vão os revisores
da História. Uma coisa é certa: com a ajuda dos movimentos antirracistas, a
colaboração de esquerdistas, a covardia de tanta gente de bem e o
metabolismo habitual dos reacionários, o movimento de correção da História
veio para ficar.
Serão anos de destruição de símbolos, de substituição de heróis, de
censura de livros e de demolição de esculturas. Até de retificação de
monumentos. Além da revisão de programas escolares e da reescrita de
manuais.
Tudo, com a consequente censura de livros considerados impróprios,
seguida da substituição por novos livros estimados científicos, objetivos,
democráticos e igualitários. A pujança deste movimento através do mundo é
tal que nada conseguirá temperar os ânimos triunfadores dos novos
censores, transformados em juízes da moral e árbitros da História.
Serão criadas comissões de correção, com a missão de rever os manuais
de História (e outras disciplinas sensíveis como o Português, a Literatura, a
Geografia, o Meio Ambiente, as Relações Internacionais…), a fim de
expurgar a visão bondosa do colonialismo, as interpretações glorificadoras
dos descobrimentos e os símbolos de domínio branco, cristão, europeu e
capitalista.
Comissões purificadoras procederão ao inventário das ruas e locais que
devem mudar de nome, porque glorificam o papel dos colonialistas e dos
traficantes de escravos. Farão ainda o levantamento das obras de arte
públicas que prestam homenagem à política imperialista, assim como aos
seus agentes. Já começou, aliás, com a substituição do Museu dos
Descobrimentos pelo Memorial da Escravatura.
Teremos autoridades que tudo farão para retirar os objetos antes que as
hordas cheguem e será o máximo de coragem de que serão capazes.
Alguns concordarão com o seu depósito em pavilhões de sucata. Outros
ainda deixarão destruir, gesto que incluirão na pasta de problemas
resolvidos.
Entretanto, os Centros Comerciais Colombo e Vasco da Gama esperam
pela hora fatal da mudança de nome.
Praças, ruas e avenidas das Descobertas, dos Descobrimentos e dos
Navegantes, que abundam em Portugal, serão brevemente mudadas.
Preparemo-nos, pois, para remover monumentos com Albuquerque, Gama,
Dias, Cão, Cabral, Magalhães e outros, além de, evidentemente, o Infante
D. Henrique, o primeiro a passar no cadafalso. Luís de Camões e Fernando
Pessoa terão o devido óbito. Os que cantaram os feitos dos exploradores e
dos negreiros são tão perniciosos quanto os próprios. Talvez até mais, pois
forjaram a identidade e deram sentido aos mitos da nação valente e imortal.
Esperemos para liquidar a toponímia que aluda a Serpa Pinto, Ivens,
Capelo e Mouzinho, heróis entre os mais recentes facínoras. Sem esquecer,
seguramente, uns notáveis heróis do colonialismo, Kaúlza de Arriaga, Costa
Gomes, António de Spínola, Rosa Coutinho, Otelo Saraiva de Carvalho,
Mário Tomé e Vasco Lourenço.
Não serão esquecidos os cineastas, compositores, pintores, escultores,
escritores e arquitetos que, nas suas obras, elogiaram os colonialistas,
cúmplices da escravatura, do genocídio e do racismo. Filmes e livros serão
retirados do mercado.
Pinturas murais, azulejos, esculturas, baixos-relevos, frescos e painéis de
todas as espécies serão destruídos ou cobertos de cal e ácido. Outras
comissões terão o encargo de proceder ao levantamento das obras de arte
e do património com origem na África, na Ásia e na América Latina e que se
encontram em Portugal, em mãos privadas ou em instituições públicas, a
fim de as remeter prontamente aos países donde são provenientes.
Os principais monumentos eretos em homenagem à expansão, a começar
pelos Jerónimos e pela Torre de Belém, serão restaurados com o cuidado
de lhes retirar os elementos de identidade colonialista. Os memoriais de
homenagem aos mortos em guerras do Ultramar serão reconstruídos a fim
de serem transformados em edifícios de denúncia do racismo. Não há
liberdade nem igualdade enquanto estes símbolos sobreviverem.
Muitos pensam que a História é feita de progresso e desenvolvimento. De
crescimento e melhoramento. Esperam que se caminhe do preconceito para
o rigor. Do mito para o facto. Da submissão para a liberdade.
Infelizmente, tal não é verdade. Não é sempre verdade. Republicanos,
corporativistas, fascistas, comunistas e até democratas mostraram, nos
últimos séculos, que se dedicaram com interesse à revisão seletiva da
História, assim como à censura e à manipulação.
E, se quisermos ir mais longe no tempo, não faltam exemplos. Quando os
revolucionários franceses rebatizaram a Catedral de Estrasburgo, passando
a designá-la por Templo da Razão, não estavam a aumentar o grau de
racionalidade das sociedades. Quando o altar-mor de Notre Dame foi
chamado de Altar da Liberdade caminharam alegremente da superstição
para o preconceito.
E quando os bolchevistas ocuparam a Catedral de Kazab, em São
Petersburgo e apelidaram o edifício de Museu das Religiões e do Ateísmo,
não procuravam certamente a liberdade e o pluralismo. E também podemos
convocar os Iconoclastas de Istambul, os Daesh de Palmira ou os Taliban
de Bamiyan que destruíram símbolos, combateram a religião e tentaram
apropriar-se tanto do presente como do passado.
Os senhores do seu tempo, monarcas, generais, bispos, políticos,
capitalistas, deputados e sindicalistas gostam de marcar a sociedade,
romper com o passado e afastar fantasmas. Deuses e comendadores,
santos e revolucionários, habitam os seus pesadelos. Quem quer exercer o
poder sobre o presente tem de destruir o passado.
Muitos de nós pensávamos, há cinquenta anos, que era necessário rever os
manuais, repensar os mitos, submeter as crenças à prova do estudo, lutar
contra a proclamação autoritária e defender com todas as forças o debate
livre.
É possível que, a muitos, tenha ocorrido que faltava substituir uma ortodoxia
dogmática por outra. Mas, para outros, o espírito era o de confronto de
ideias, de debate permanente e de submissão à crítica pública.
O que hoje se receia é a nova dogmática feita de novos preconceitos. Não
tenhamos ilusões.
Se as democracias não souberem resistir a esta espécie de vaga que se
denomina libertadora e igualitária, mergulharão rapidamente em novas eras
obscurantistas.
António Barreto
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