Jornal de Negócios, 09
Agosto 2013
Pedro Santos Guerreiro
Não é esta a promiscuidade a que estamos habituados. Falamos de conúbios financeiros há anos, de políticos na banca e de
banqueiros na política, nos créditos de uns para as obras de outros, nos financiamentos opacos, leis de favor, benefícios fiscais, dinheiro dos
contribuintes, somos catedráticos nessa inconsequente disciplina.
Mas isto dos "swaps" tóxicos é outra selva.
Não é negociata de paróquia, é prática implacável dos maiores bancos de
investimento do mundo. É ao lado negro de um planeta fascinante e
sinistro de delícias e sevícias onde se compra e vende tudo, e onde os parvos são palha para estofar sofás.
O relato é feito amiúde por "arrependidos" que largam o vício do
dinheiro. Sim, do
dinheiro: a banca de investimento paga os salários mais altos do
mundo empresarial. Os salários não, os prémios.
Prémios que dependem de desempenho.
Desempenho que depende de angariar lucro.
Lucro que depende muitas vezes de transaccionar risco
para os clientes.
O português João Ermida deixou de ganhar milhões por ano no Santader porque já não suportava olhar-se ao espelho e publicou um livro expiando os seus pecados.
O americano Greg Smith
escreveu uma carta memorável, "Porque estou a sair da
Goldman Sachs", retrato cru de uma organização disposta a
sacrificar os interesses de clientes no vórtice da obcecação pelo seu próprio
lucro.
Um pequeno relato pessoal: em 2009 infiltrei-me alguns dias em vários bancos de
investimento na City, disfarçado de financeiro de empresa cotada em reuniões
com investidores, naturalmente vedadas a jornalistas.
Foi como acompanhar um
"road show", nunca pude escrever sobre essas reuniões nem o farei
agora. Mas posso, porque já passou suficiente, relatar o paradoxo a que assisti
dentro e fora desses bancos.
Tinha passado um ano
desde a falência do Lehman Brothers e de terem sido juradas guerras infernais às actividades
não reguladas da banca, a pressão política sobre quem havia intoxicado o mundo de
prejuízos do mercado imobiliário americano
(o
"subprime") era intensa,
as opiniões
públicas queriam condenados, os reguladores prometiam guerra, as
manchetes dos jornais ingleses desses dias eram invariavelmente com escândalos
de bónus de banqueiros.
Pois bem, nesses
bancos eu entrei numa espécie de Atlântida encapsulada do ambiente depressivo (e repressivo) das ruas. Lá dentro só se
falava de bónus.
O ano aproximava-se do
fim e as bocas desenhavam risos em todas as caras, que se viravam das janelas
desprezando as manifestações lá fora.
Semanas depois soube-se: depois
da hecatombe de 2008, a banca de investimento teve o melhor ano de sempre em
2009.
Em grande parte porque
os Governos, desesperados com os riscos de depressão económica causada pelo
sistema financeiro no "subprime", carregaram no investimento público, aumentando as suas dívidas públicas,
com financiamento e assessoria... dos bancos de investimento.
Nesses dias, em Londres, perdi as ilusões sobre a possibilidade de
moralização ou captura regulatória da actividade financeira.
Não estamos a falar de toda a banca, nem sequer de toda a banca de
investimento, mas de departamentos que nela se mantêm ante a impotência da
supervisão.
Estamos a falar de produtos estruturados, de "swaps",
ABS, CDS, ETF, MBS, "black pools", "proprietary trading",
transacções de alta frequência, derivados sobre
acções, taxas de juro, moedas, commodities, produtos negociados "ao
balcão", sem passarem
por plataformas reguladas.
Comprar um "swap" é uma decisão normal para proteger uma empresa
do risco de taxa de juro.
Mas há "swaps" normais e
exóticos - e as empresas
públicas (e muitas PME) compraram risco
insuportável a troco de ganhos imediatos.
Sabendo ou não o que
faziam (o que não é
indiferente), foram
triturados nos passadouros dos bancos de investimento.
A indústria financeira é alquímica,
produz ricos sem produzir riqueza.
Não fabrica pregos e não constrói pontes, financia e cria complexidades.
O célebre livro "O
Capitalismo é Amoral" foi escrito por eles.
A banca de
investimento fornece as soluções à medida, as boas e as diabólicas.
Na indústria da aviação, por exemplo, a compra
de "swaps" sobre o petróleo tornou-se às tantas mais importante para o negócio que a venda de
bilhetes.
A pressão para os
resultados é brutal e o prémio pode ser gigante. A
ética não é uma variável. Come-se o que se mata.
Mata-se colegas, concorrentes, clientes, empresas, Estados.
O serviço destes
bancos na Grécia, e que foi proposto a Portugal, não foram produtos
financeiros, foram produtos sobre como mentir.
Mentir nas contas públicas, mascarar dívidas, esconder riscos, enganar os
povos.
E, no entanto, mesmo depois da vergonha desmascarada, os mesmos bancos são
contratados pelos mesmos Estados (incluindo Portugal), que continuam
sujeitos às mesmas agências de "rating". Eles são os
mercados.
E nós precisamos dos
mercados porque somos dependentes da droga que eles vendem:
crédito.
Os Pais Jorges são peões minúsculos no
tropel deste processo.
A sua entrada no
Governo até podia ser boa pela razão que leva empresas de "software"
a contratar "piratas": pelo que sabem.
O senhor estatelou-se
em mentiras e foi cuspido, num processo político e mediático que dispersa a
nódoa, destruindo peões e a imagem dos partidos, mas desinteressado do essencial:
a preservação das
acções políticas de devedores compulsivos e financeira de credores ardilosos
que gerou este escândalo e gerará o próximo.
O regime transformou-se num esquema.
Sem comentários:
Enviar um comentário