sexta-feira, 27 de agosto de 2021

A DEMOCRACIA ACABOU...

 A democracia já acabou?


Mário Cabrita

23 Junho 2021 — 00:07


Ao longo do último mês, a propósito da reforma da Estrutura Superior das

Forças Armadas (FA), vários políticos e comentadores foram-nos

mimoseando com alguns dos maiores dislates, despautérios e equívocos da

nossa democracia. Entre os mais bizarros, incluíram-se estes:

"O assunto será discutido no local certo, no Parlamento, que é a casa mãe da

democracia..." Em teoria, é uma asserção inatacável. Na prática, o que

sucedeu? Primeiro, foi recusado o pedido de associações para serem ouvidas

na Comissão de Defesa Nacional (CDN). Seguiu-se a resolução,

incompreensível, de interpelar os Chefes Militares à porta fechada, como se

fossem tratar de segredos de Estado ao invés de matérias de conhecimento

público. Finalmente, a intervenção do CEMGFA (pró proposta do governo)

foi divulgada na comunicação social, ao contrário da dos outros Chefes

Militares (que se presumia contrária à proposição), que permaneceu na

esfera restrita dos parlamentares. Foi uma tentativa agressiva de calar

opiniões dissonantes, mais própria doutro tipo de regime.

Os deputados podem estar bem preparados em muitas matérias. Contudo,

em questões militares, nem todos estarão à vontade para as esmiuçar com

fundamento. Seria do mais elementar bom senso ouvirem opiniões distintas,

não para as seguirem, mas para se habilitarem a tomar uma decisão

alicerçada em todas as fontes de informação disponíveis.

"O professor Cavaco Silva devia estar calado, quando não sabe do que fala,

e nada sabe desta área..." É uma frase assassina. O objetivo era, claramente,

desacreditar, depreciar e quase humilhar uma figura com peso institucional

que, publicamente e com estrondo, discordou da reforma proposta pelo

governo e apoiada pelo seu próprio partido. Cavaco Silva foi primeiro-

ministro dez anos e Presidente da República e Comandante Supremo das

FA outros dez. O autor daquela afirmação usou linguagem inadmissível e

lamentável, demonstrando que, em política, a alguns tudo se autoriza,

mesmo achincalhar quem durante anos foi o seu líder político.

"Cavaco Silva não sabe nada, mas outros sabem, os oficiais-generais

sabem..." Na sequência da declaração anterior o entrevistado reconhece

aptidão e conhecimento dos militares sobre a matéria e a sua legitimidade

para intervir no debate. Então, por que razão não promoveu a sua audição?


Uma vez mais a intenção era calar e impedir que se adicionasse luz e

substância à polémica, em nome dum projeto que se queria sem

contraditório, a lembrar práticas habituais de um passado negro que

conhecemos bem.

"O projeto da reforma foi amplamente discutido antes de chegar à AR..." Se

isso aconteceu foi graças à intervenção dos militares, o que permitiu e

fomentou algum debate público, mesmo assim reduzido e só depois de

aprovado para levar à AR. Ficou claro que o promotor queria que a reforma

fosse validada de forma célere e sem a sujeitar à apreciação da comunidade.

"Conheço o pensamento corporativo dos militares..." Se entendermos o

corporativismo, no sentido negativo, como prática dum grupo que defende

os seus interesses em detrimento dos coletivos, a instituição militar, desde

1974, tem dado inúmeros exemplos de conduta totalmente oposta. Os

militares, por formação e convicção, colocam à frente os interesses

nacionais, só depois os institucionais e por último individuais. Isso não

impede que reajam quando se sentem lesados. Ao contrário de outros

grupos que procuram a satisfação de reivindicações recorrendo a

manifestações públicas, os militares exteriorizam-se pela palavra, o que

pode explicar que o poder político nunca tenha acolhido nenhum dos seus

anseios, até os mais insignificantes.

"Em democracia, quando há um embate entre civis e militares, eu sei

sempre de que lado é que estou (do dos civis)..." Onde estão a democracia e

a transparência? E o debate de ideias? E a dialética? As opiniões são

legítimas, mas o preconceito é intolerável e qualifica quem o utiliza.

"Estou de acordo com esta reforma, embora não a conheça..." Ouvimos

bem? Lapsus linguae? Pagamento de favores? Onde está a honestidade

intelectual? Isto sim, é corporativismo e seja qual for a justificação esta

posição é inconcebível e inaceitável.

"Respeito as FA na sua total submissão ao poder político civil..." Não, as

Forças Armadas obedecem aos órgãos de soberania competentes, nos

termos da Constituição e da Lei de Defesa Nacional. Obedecem e vão

continuar a obedecer. Sobre isso ninguém pode ter qualquer dúvida. Mas

submissão acrítica, sem questionar erros que podem comprometer as

missões das Forças Armadas, isso não. E entendida como subjugação e

vassalagem, como desejam alguns, em circunstância alguma!

As últimas semanas mostraram debilidades da democracia e falta de

qualidade de alguns dos seus intérpretes. Arrogância, incoerência,


incompetência e falta de dignidade e de sentido de Estado são demasiado

frequentes por parte de responsáveis dos poderes instituídos.

Apesar das dificuldades acrescidas provocadas pelo diploma recém-

aprovado pela CDN, as FA continuarão a empenhar-se, a sacrificar-se e a

dar o melhor de si para cumprir as missões e manter os níveis de excelência

a que habituaram os portugueses e a comunidade internacional. No final,

desejamos que cada um saiba assumir responsabilidades na atribulada

caminhada deste processo.

Tenente-general reformado

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