sexta-feira, 29 de maio de 2015

YAZIDIS

O lugar sagrado dos yazidis sobrevive à guerra do “Estado Islâmico”


O mundo começou aqui, neste ponto do Norte do Iraque, acreditam eles. Visita ao santuário dos yazidis, antiquíssima minoria que o “Estado Islâmico” massacrou no Verão passado, matando milhares, escravizando outros milhares.





Por um instante, é quase o Oeste Selvagem, tão ampla a paisagem, longa recta, montanha ao fundo. Mas a terra é mais verde, a montanha menos árida, com picos de neve até, e já passámos oliveiras, ninhos de cegonhas, vamos passar uma chama: petróleo. Estamos no Norte do Iraque, numa cristalina tarde de Maio, a caminho do começo do mundo, segundo os yazidis.
O mundo não estava muito informado sobre esse começo, sobre os yazidis em geral, até Agosto passado, quando o “Estado Islâmico” capturou um vale onde os ancestrais dos yazidis já viviam desde muito antes do islão. De súbito, a tragédia saltou para as manchetes: 50 mil yazidis estavam em fuga pelas montanhas, sem água nem comida, encurralados pelo “Estado Islâmico”, que já matara, violara ou sequestrara os que tinham ficado para trás. Um povo que os espectadores internacionais nem sabiam que existia tornou-se assim o símbolo colectivo da crueldade jihadista, na sua expansão imperial. Obama e aliados ordenaram ataques aéreos contra o Califado e largada de alimentos sobre as montanhas. Combatentes curdos da Síria organizaram-se para levar os yazidis através da fronteira, e de novo para o Iraque, em terra mais segura. Mas tudo isto não evitou que, segundo estimativas da ONU, entre 5000 a 7000 yazidis tenham morrido e outros 5000 sido sequestrados, sobretudo mulheres, como escravas domésticas e sexuais, e crianças, como futuros combatentes e bombistas suicidas. Há relatos de adolescentes violadas no início da invasão que conseguiram voltar às famílias e acabaram por se suicidar. Uma mãe contou que duas filhas suas, incapazes de viver com o que lhes acontecera, pediram à família que as matasse; como ninguém o fez, atiraram-se de um penhasco.
A região onde o massacre se deu chama-se Sinjar e fica a 175 quilómetros de Lalish, o santuário para onde estamos a ir. Estas duas regiões são os grandes centros yazidis no Iraque. Também há uma presença histórica de yazidis na Arménia, na Geórgia, na Síria, e na Turquia, de onde ao longo das últimas décadas dezenas de milhares emigraram para a Europa, sobretudo para a Alemanha.
Na tradição local, o Sinjar é onde a Arca de Noé pousou, depois do Dilúvio. Na tradição yazidi, Lalish é onde o mundo nasceu. Belo destino para uma tarde de Maio.
“Não são humanos”
Fácil esquecer que Mossul, a maior cidade iraquiana controlada pelo “Estado Islâmico”, fica apenas a 60 quilómetros daqui. Mas na subida para o santuário há um checkpoint igual a dezenas de outros pelo Curdistão Iraquiano, apenas sem trânsito, tranquilo. Depois, as fardas ficam para trás, e os cones que são a imagem da arquitectura yazidi aparecem ao longe, com raios a toda a volta simbolizando o sol, ou seja, Deus.
Monoteísmo sincrético oriundo da antiga Mesopotâmia, o yazidismo foi incorporando elementos pagãos, judeus, cristãos, zoroastras, islâmicos, ao longo dos séculos. O culto que daqui resulta, já veremos, é aberto a qualquer forasteiro, mas nem por isso menos enigmático.
A ONU reconhece os yazidis como um grupo étnico próprio, de língua curda. Os yazidis consideram-se os curdos originais, aqueles que resistiram a converter-se ao islão. E os curdos, esmagadoramente sunitas, vêem os yazidis como uma minoria religiosa curda. Para a coesão do grupo através do tempo, tão imune a um contexto muçulmano cada vez mais incisivo, alguns códigos foram essenciais: os yazidis só casam entre si; e ninguém se torna yazidi. Nem proselitismo nem conversão.
O chão sagrado de Lalish começa logo na rampa onde os carros estacionam, primeiro lugar onde vemos gente descalça. E, à medida que subimos, descem homens de keffiyeh vermelho na cabeça e uma vassoura de ramos na mão. Quando alcançamos o primeiro lance de escadas, do lado esquerdo da rampa, o quadro fica completo: homens em vários degraus, a varrerem energicamente a pedra, todos com aquele kaffieh, que não é tão comum entre os curdos, e aquela vassoura de ramos verdes: nada artificial deve tocar o chão de Lalish, e a estes homens cabe mantê-lo limpo.
O lance de escadas repete-se adiante, de um lado e do outro, porque o santuário se desdobra em múltiplas plataformas e tarraços em volta do templo principal. Nos terraços há umas casinhas, equivalentes a capelas, com pessoas sentada à porta, outras a ir e vir. Mas nada se compara com o frenesim que vai no pátio principal: dezenas de homens a varrerem, a varrerem.
“Acabou de haver uma festa”, explica um rapaz de cara dura, Hasso, 21 anos. Veio do Sinjar, como tanta gente em volta. Lalish é só o santuário, aqui no alto, mas lá em baixo está a cidade de Shekhan que alberga a população yazidi, agora reforçada com os refugiados. “Os jihadistas [que tomaram o Sinjar] não eram muitos mas as tribos árabes cooperaram com eles”, conta Hasso. Também ele fugiu para a montanha, e da montanha para a fronteira síria, e de novo para o Iraque. Quando a repórter lhe pergunta o que acha que é o “Estado Islâmico”, ele responde: “O demónio”. E isso é exactamente o que o “Estado Islâmico” acha que os yazidis são, adoradores de satã.

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