terça-feira, 9 de outubro de 2012

Por onde deixamos o nosso coração!

A Comunidade de Tugu




A comunidade de Tugu vive numa aldeia, a nordeste de Jacarta, chamada Tugu. Esta zona de Jacarta é muito caótica, barulhenta e poluída devido à proximidade do porto de Tanjung Priok. Este porto é o principal do país, é enorme, com os seus cerca de 430 hectares, e tem um tráfego incessante. As estradas desta área de Jacarta têm um trânsito sempre congestionado pelos inúmeros camiões de carga que vão e vêm do porto. Assim, podem imaginar que não é muito fácil nem agradável o caminho até Tugu! No entanto, quando avistamos o pequeno cemitério da aldeia, começamos a relaxar um pouco. Saindo da estrada infernal e transpondo o portão de entrada, soltamos enfim um suspiro de alívio e de prazer: chegámos a Tugu. Fico sempre admirada com o aconchego, a limpeza e o encanto daquele lugarejo, afinal tão próximo da estrada infernal, mas ao mesmo tempo tão distante. Esquecemo-nos completamente dos camiões, do monóxido de carbono e do bulício enervante de onde viemos e entramos num mundinho à parte, com uma bela igreja branca do século XVII, encimada por telhas vermelhas, ao lado de um cemitério bem cuidado, com uma escola e uma biblioteca (construída com o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian), um jardim e muitas árvores de fruto.

A Igreja de Tugu ou Gereja Tugu (a palavra indonésia gereja vem do português). [Fotografia cedida por Andre Michiels]
O cemitério de Tugu. [Fotografia cedida por Andre Michiels].
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Continuando mais para Este, mais para dentro, atravessamos o rio Cakung e vamos dar à aldeia propriamente dita, formada por ruelas retas e perpendiculares onde encontramos pequenas moradias com alpendres e vasinhos com flores. Nesta aldeia não vive apenas a comunidade de Tugu, vivem também indonésios de outras partes do arquipélago: das ilhas Celebes, das ilhas Molucas ou doutras regiões de Java.
Neste momento, vocês devem estar a perguntar-se o que é que a comunidade de Tugu terá de especial para eu perder tanto tempo e palavras a descrever a sua aldeia…
Há várias versões da origem da comunidade de Tugu. A mais comummente aceite é a de que se trata de uma comunidade de descendentes de mestiços Portugueses e de antigos escravos de Portugueses: um grupo de Mardjikersque habitava a então chamada Batavia (nome por que era conhecida Jacarta nos tempos da administração holandesa).
Para compreender quem eram os Mardjikers, é preciso um pouco mais de História.
Jacarta foi conquistada pelos Holandeses em 1619 e grande parte da sua população não era indígena. Inicialmente, vieram habitantes da costa de Coromandel e da costa do Malabar na Índia, recrutados pelos Holandeses para trabalhar como soldados do exército colonial e como guardas para manter a paz em Batavia, impedindo revoltas locais. Estes homens eram apelidados de Mardjikers (termo do sânscrito atribuído no período Hindu a religiosos ou monges que não pagavam impostos), pois estavam isentos de pagar impostos. Mais tarde, surgiram escravos oriundos das ilhas Molucas, que trabalhavam nos navios ou na construção de fortes, estradas e outros projetos. Por bom comportamento ou pelos bons serviços prestados, estes escravos eram muitas vezes libertados – e passavam a ser chamados Mardjikers também, não porque não pagassem impostos, mas porque eram livres. Finalmente, depois do declínio do império colonial português no Sudeste Asiático em meados do século XVII, chegaram comerciantes, artesãos e aventureiros oriundos de Malaca, Ceilão, Cochim e Calecute – estes estrangeiros, com mais talento, conhecimento e experiência no convívio com os Europeus, tornaram-se funcionários públicos, proprietários de lojas e empregados em entrepostos comerciais. Socialmente, misturavam-se com os Mardjikers. Estas três levas de emigrantes acabaram por se fundir numa comunidade mais ou menos homogénea durante o século XVII. Eram os chamados “Portugueses Negros”. Esta denominação vem do facto de esta população ser maioritariamente de pele mais escura do que os malaios, por fazerem parte de comunidades de “cafres”, ou seja, africanos da costa oriental levados, primeiramente por portugueses e mais tarde por britânicos, para as costas da Índia. O que é que esta gente – de países e regiões diferentes; de grupos sociais, culturais e profissionais diferentes – tinha em comum? A língua e a religião.

Todas estas pessoas tinham vindo de regiões onde Portugal estivera presente, quer como potência colonizadora quer apenas como agente comercial, tendo sofrido a influência da língua, religião e cultura portuguesas. Todas elas adotaram o Português como língua de comunicação e durante quase dois séculos o Português foi efetivamente a língua de comunicação em Batavia: entre Europeus e nativos de diferentes países e mesmo entre os próprios Asiáticos que vinham dos seus diferentes países para Batávia. Ao contrário do que se imaginaria, a religião dos “Portugueses Negros” não era o catolicismo. Todos eles foram convertidos ao Calvinismo em Batávia, devido às imposições rígidas dos Holandeses – que, no entanto, não conseguiram converter-lhes a língua.
Os Tugu descendem de um grupo de Mardjikers a quem os Holandeses ofereceram um terreno (onde fica a aldeia de Tugu), em 1661, pelos bons serviços prestados à Companhia das Índias Orientais.
Apesar de todas as vicissitudes, este pequenino enclave manteve vivo um crioulo de base lexical portuguesa, o Papiá Tugu, até 1978 – ano em que morreu Jacob Quiko, o então chefe da comunidade e único falante da língua. Atualmente, esse crioulo sobrevive apenas nas letras das canções de Keroncong que eles cantam.
Andre Michiels, o chefe da comunidade, com crianças de Tugu – cantando e tocando Keroncong.
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O Keroncong é um tipo de música que nasceu no seio desta comunidade e que é hoje em dia considerado um tipo de música nacional de grande popularidade. A sua origem remonta ao século XVI, quando marinheiros portugueses trouxeram com eles a sua música e instrumentos ao arquipélago indonésio.
No entanto, é também possível sentir uns resquícios desse belíssimo crioulo, muito semelhante àquele falado em Malaca, em algumas expressões quotidianas que ficaram cristalizadas e que os membros da comunidade ainda usam.
Os Tugu são protestantes. Fazem questão de assumir e exibir a sua diferença relativamente aos “outros”. Orgulham-se da sua ascendência portuguesa, gostam de beber vinho, de comer carne de porco, dançam aos pares, falam com brio da sua fisionomia europeia e dos seus narizes longos, riem-se desbragadamente e dão-se a comentários brejeiros (o que contrasta imenso com a cultura javanesa que preza a moderação e a cerimónia) e adoram conviver, cantar e dançar.
Em 2008, a então Leitora do Instituto Camões em Jacarta, Maria Emília Irmler, criou – com a assistência de uma jovem indonésia que aprendera danças tradicionais portuguesas em Macau, a Pipita – um grupo de danças tradicionais portuguesas constituído por membros da comunidade. São os Romeiros de Tugu. *
Os Romeiros de Tugu no Navio Sagres, em 201o.
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Finalizemos, então, com uma cantiga Keroncong chamada “Cafrinho”, que fala sobre uma mestiça portuguesa de Goa, cantada em crioulo de Tugu pelo chefe da comunidade: Andre Michiels. O termo “Cafrinho” vem de “cafre”, que mencionei acima. É, assim, uma forma musical comum a várias comunidades luso-asiáticas desde o Sri-Lanka, à Malásia e à Indonésia, que remonta ao folclore crioulo português de África, que chegou à Ásia a bordo dos navios portugueses.* Reparem na execução instrumental desta cantiga cafrinha da comunidade de Tugu, que é magnífica – autêntico jazz crioulo!


Deixo-vos, também, um gostinho do crioulo Tugu com a belíssima letra da canção Keroncong – “Moresco”, provavelmente uma canção popular entre os marinheiros portugueses do século XVI.
Moresco
Anda-anda na bordi di mare
Mienj korsan nunka contenti
Io buska ja mienja amada
Nunka sabe ela já undi
Io buska mienja amada
Ia mienja noiba mienja amoor
Io buska até tuda banda
Isti corsan teeng tantu door
Io prunta fula e strella
Bosoter munka ola un tenti
Fula e strella nunka resposta
Mienj korsan nunka kontenti
O, bie aki mienja amada
Mienja noiba, o moler bonito
Io espara con esparansa
E canta contigo Moresco
Anda, anda pela borda do mar
O meu coração nunca está contente
Eu busco a minha amada
Nunca sei onde ela está
Eu busco a minha amada
A minha noiva, o meu amor
Eu busco-a por todo o lado
Este coração tem tanta dor
Eu pergunto a uma flor e a uma estrela
“Vocês viram-na?”
A flor e a estrela nunca respondem
O meu coração nunca está contente
Ó, vem aqui minha amada
Minha noiva, ó mulher bonita
Eu espero-te na esperança
De cantar contigo o Moresco
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* “A Cafrinha – Canções negras portuguesas – são versos dos negros que foram com os Portugueses para a Índia, cantados com acompanhamento das formas musicais kafrinha e chicote. São versos satíricos e humorísticos na expressão do tema do amor. A mulher nestes versos é a negrinha, o termo empregado para a mulher local, e o tema do prazer evidencia-se mais em canto, dança e bebida. Os versos cafres parodiam as relações sociais, particularmente os papéis estereotipados de criada e amante atribuídos à mulher negra pelos portugueses.” [adaptado] in Kenneth David Jackson, Cantha sen Vargonya. Tradições Orais em Verso Crioulo Indo-Português, Fundação Macau, 1996.
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Sara França

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