Monitorizar o pensamento
Mal vai
um país quando se começa a olhar, não para o que as pessoas fazem, mas
sim para o que pensam, sentem e dizem! Muito mal vai um povo quando as
autoridades pretendem estabelecer códigos morais,
linhas divisórias de atitude e barreiras para os sentimentos!
19 de Julho de 2020
Talvez seja coincidência, mas não parece! Um dia, por causa de um livro, seis
dúzias de académicos empenhados subscrevem um manifesto no
qual protestam contra a academia que protege a direita, dizem eles, que
branqueia
a extrema-direita, garantem, que ajuda o racismo, afirmam. Em poucas
palavras, contra uma academia que não denuncia o discurso de ódio,
resumem. No dia seguinte, são desvendados rumores de planos que o
Governo faz para encomendar
às universidades que vigiem o discurso do ódio,
que supervisionem as redes sociais e que acompanhem as narrativas
públicas sobre estrangeiros. Nada, lei ou palavra de ministro,
é seguro. Por enquanto, “diz-se”, “vai pensar-se”… Mas o caminho está
desbravado.
Na verdade, o
que se anuncia é um dos mais violentos atentados contra a liberdade de
expressão que Portugal conhece há décadas! Como quase sempre, sob a
aparência de causas nobres (contra o racismo)
e de sentimentos elevados (contra o ódio), o que na verdade se propõe é o estabelecimento
de um cânone de virtudes e de um catecismo de valores.
Os governantes e os cientistas sociais que assim se exprimem pretendem a
“monitorização” dos discursos, actividade aparentemente
inócua. O que na verdade querem é o estabelecimento de uma ordem. Para
que serve “monitorizar”? Não tenhamos dúvidas: é
um eufemismo para vigiar, policiar, registar e fiscalizar.
É o que fazem as polícias,
a PIDE, a KGB, a STASI e outras, vivas ou defuntas. É o que sempre
fizeram as censuras. De repente, estas pessoas encontram o pretexto
ideal: um partido fascista e um deputado xenófobo! Contra esse mal,
desembainham espadas e alinham artilharia. Revelam-se
os censores que são.
Os
signatários do manifesto não escondem ao que vêm: impedir a universidade
livre e plural, a fim de defender uma academia empenhada e vigilante!
Os manifestantes não discutem o livro, não contestam
as conclusões. Talvez nem sequer o tenham lido! Limitam-se a denunciar o
autor, a sugerir a proibição, a recomendar o saneamento e a definir
fronteiras para o pensamento admissível!
É pena ver
entre aqueles signatários pessoas que não julgávamos capazes disto.
Engano nosso! É uma desilusão contar entre os manifestantes pessoas que
em tempos deram o seu nome a combates pela liberdade
de expressão. Erro nosso! Eles lutavam pela sua liberdade, não pela de todos.
Depois do
manifesto inquisitório, os pezinhos de lã do Governo disfarçam as
botifarras da censura. Parece que o Governo vai abrir democrático
concurso para aprovar cinco projectos de monitorização
das expressões e das narrativas! Sempre com motivos nobres, claro:
denunciar o ódio e observar o racismo!
É bem
possível que estes planos alucinados não sejam mais do que isso, planos
alucinados! Mas é melhor estarmos prevenidos. Há coisas que se fazem,
rumores que se deixam correr e vagas intenções que
chegam ao público com a missão de sondar os espíritos. Logo se verá
depois se as coisas correm bem ou mal.
O mais provável é que estejamos diante da ambição de experimentar práticas de controlo da expressão, de censura e de intoxicação.
Os pretextos, o racismo e a xenofobia, são tão consensuais que podem
ser aproveitados para a criação de uma censura política e moral, que
acabará por ser muito mais vasta do que aquelas perversões do espírito.
Outras formas de expressão virão a seguir.
Tudo o que
se descreve acima é selectivo. Evidentemente. O racismo, a xenofobia e a
desigualdade são consideradas nefastas ou toleradas, conforme as
conveniências políticas. A retórica da violência
também: se destinada a inimigos de classe é aceitável; se dirigida a
forças reaccionárias é valorizada; se endereçada a certas etnias é justa
luta, mas se forem outras, será considerada incitação ao ódio…
Entre
governantes, grupos fanáticos e académicos apostados em destruir a
universidade e substitui-la por fuzileiros do pensamento, está a
criar-se um clima que faz lembrar a censura salazarista,
o macarthismo, o jdanovismo soviético…
Com algumas diferenças. Antes, eram as polícias e os tribunais. Hoje,
são agências de comunicação e universidades que se prestem a tal
serviço.
É
seguramente a tentativa de atentado à liberdade de expressão mais
detestável da democracia portuguesa, só comparável às leis salazaristas,
fascistas e comunistas. O governo prepara. O Parlamento
espera. Há universidades que se prestam e faculdades, institutos e
centros de estudos que se perfilam para cuidar da virtude pública…
Mal vai
um país quando se começa a olhar, não para o que as pessoas fazem, mas
sim para o que pensam, sentem e dizem! Muito mal vai um povo quando as
autoridades pretendem estabelecer códigos morais,
linhas divisórias de atitude e barreiras para os sentimentos!
É tudo por boas causas: os governantes e as universidades empenhadas só
pretendem que não haja racismo, só se esforçam por
que não haja ódio, só pretendem que as pessoas sejam boas! Sabemos que
as autoridades e os académicos empenhados só querem o nosso bem! Mas
esse é mesmo o ponto: quem é livre não quer que as autoridades se ocupem
do seu bem! Nem que seja para “monitorizar”.
Sabemos que quando as autoridades se ocupam do nosso bem dá asneira.
É realmente
inquietante ver que há universidades que se prestam, académicos que se
candidatam, governantes que se preparam e intelectuais que não se
importam. E um partido cujo comportamento se estranha.
Onde está o Partido Socialista para quem o golpe do jornal República
foi o sinal de alarme para a campanha da liberdade de 1975? Que é feito
dos socialistas que não se deixavam enredar nas teias que põem em causa a
liberdade de expressão? Que aconteceu ao
PS de Mário Soares, cujo primeiro livro tinha como título Portugal
amordaçado? De
onde vieram os socialistas que fecham os olhos e tapam os ouvidos diante desta ofensiva contra a liberdade que se propõe monitorizar o discurso e a narrativa? Como
é possível que as últimas gerações de socialistas não resistam a tentar
comprar ou calar jornais e jornalistas, redes sociais e televisões? E
como se pode imaginar que haja universitários prontos para se
transformarem em sacerdotes da monitorização e sargentos
do “Grande Irmão”?
Estes
senhores não querem apenas combater o que entendem ser o fascismo, o
racismo ou o populismo. Querem também destruir a democracia plural, a
liberdade de expressão e o livre pensamento. São
mesmo perigosos, não é só conversa!
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