Quantos anos de salários destes precários, agora na rua, seriam pagos com esses dividendos?
A triste medalha dos heróis
635 euros, o valor do salário mínimo, é o que ganham 756 mil trabalhadores portugueses. Entre eles, estão algumas das pessoas a quem, por estes dias, chamamos "heróis". Nas caixas de supermercado, quanto ganham? E na recolha do lixo? No apoio aos idosos nos lares, que salário? E na limpeza das carruagens do metro ou dos hospitais? É a esta gente, sem a qual a nossa sociedade colapsaria, que se paga o mínimo dos mínimos. Numa reportagem televisiva no Hospital Curry Cabral, a jornalista da SIC encerra a peça com uma pergunta à assistente operacional dos cuidados intensivos: “quanto é que ganha?”. Patrícia, que está na linha da frente do combate à pandemia naquele hospital, responde: “Tiro à volta de 640 euros, 650, anda à volta disso”.Na passada quarta-feira, no Parlamento, foi chumbada a atribuição temporária de um subsídio de risco (no valor de 20%) para os trabalhadores que, em plena crise e emergência, continuam a trabalhar em funções vitais. Pergunto-me se os deputados do PS, do PSD e do CDS, que rejeitaram a proposta, terão coragem de lhes ir depois bater palmas à janela.
Um pequeno mapa do abuso
Os números são oficiais: há mais 4 mil e 98 desempregados por dia no nosso país que se inscrevem nos centros de emprego. A essas dezenas de milhares de novos desempregados, somam-se os 642 mil que estão em casa em lay-off com o corte de 1/3 do salário. E os mais de 100 mil recibos verdes que já pediram apoio à Segurança Social por terem ficado sem emprego.A par das dificuldades reais de muitas empresas, sobretudo as micro e pequenas que são 90% do nosso tecido produtivo, existe também o oportunismo que se aproveita da impunidade instalada. Quem quiser ter uma radiografia da vaga de abusos e despedimentos que está a ter lugar no país, pode consultar um relatório construído a partir do levantamento de cerca de 800 denúncias. É um primeiro retrato da realidade – e não é bonito de se ver. São dezenas de milhares os precários que, em período experimental, com contrato a prazo, intermediados por uma empresa de trabalho temporário ou a recibo verde, já foram descartados pelas empresas. A esses soma-se um número indeterminado de trabalhadores informais, que nem a proteção social têm direito. E juntam-se também os cerca de 100 despedimentos coletivos que já ocorreram entre março e abril.
Muitas empresas tiveram como primeiro reflexo, quando a pandemia chegou, despedir os trabalhadores mais frágeis e obrigar os outros a tirar férias, fazendo-os pagar assim, com o tempo de repouso que já não terão, a paragem da atividade. Várias destas empresas, uma vez consumados os despedimentos dos precários, foram bater à porta do Estado para receber o dinheiro da medida de “apoio à manutenção dos contratos de trabalho”, o nome do “lay-off simplificado. Algumas, aliás, já estão a recebê-lo. Faz sentido que uma empresa que despediu centenas de pessoas seja apoiada pelo dinheiro de todos? Faz sentido que, em pleno estado de emergência – o mesmo que limitou direitos a cidadãos e trabalhadores – se permita que empresas com lucro despeçam e distribuam dividendos?
Despede-distribui-recebe
O Governo tinha anunciado, quando tornou públicas as primeiras medidas de apoio às empresas, que iria exigir como contrapartida que elas não despedissem. A “proibição de despedimentos” que ficou na lei é esta: as empresas apoiadas podem despedir antes do lay-off, podem despedir depois e até podem despedir durante se forem os precários. No Parlamento, as propostas que exigiam das empresas, designadamente as apoiadas, que não despedissem, foram rejeitadas por PS e PSD. E, apesar da indignação de Rui Rio, no Twitter, contra a “ganância” das “empresas que querem distribuir dividendos relativos a lucros de 2019”, o mesmo destino teve a proposta que impedia essa distribuição.Os acionistas da Galp podem, pois, estar tranquilos com a sua assembleia-geral. E talvez alguém lhes lembre que, despedidos os precários e distribuídos os 300 milhões, ainda podem acrescentar um lay-off à sua ordem de trabalhos.
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