A Europa e o Mundo estão a viver uma situação que possui diversos pontos de contacto com os
acontecimentos que se produziram após a subida de Adolf Hitler ao poder, em 1933. O desfecho da
1.ª Guerra Mundial servira de impulso anímico para o ajuste de contas que é de esperar de um
partido nacionalista. O ressentimento, tal como o medo, constitui poderoso esteio para a
manipulação de multidões. No caso alemão, a derrota na guerra foi justificada como o resultado de
uma iníqua traição – a célebre “punhalada nas costas” –, à qual se seguiu a humilhação dos pesados
termos do Tratado de Versalhes. No caso italiano, devidamente aproveitado pelo partido de
Mussolini, pertencendo a Itália à coligação vencedora, lançou-se mão de outro slogan – a não
menos célebre “vitória mutilada” –, fundamentado em alegadas humilhações verificadas aquando da
partilha dos despojos de guerra. Em ambos os casos, o ressentimento ali estava para ser empregue
na mobilização das massas.
Na corrida de Hitler para a guerra, o pacifismo dos antigos Aliados e o desejo de que uma nova
guerra não eclodisse sem um motivo forte permitiram ao ditador nazi suplantar sem oposição a
reconstrução das Forças Armadas alemãs, a reocupação da Renânia, a anexação da Áustria, a
absorção dos Sudetas, território checoslovaco, e, logo depois, a ocupação de toda a Checoslováquia.
Aí, os Aliados decidiram que, na próxima vez que Hitler pisasse uma ‘linha vermelha’, iriam para a
guerra. Ainda assim, nas semanas que antecederam o seu início, o Führer “não conseguia
compreender por que razão a atitude britânica tinha agora mudado tão repentinamente da
conciliação para a resistência”.1
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Todavia, no caso de o próximo passo ser para leste da Alemanha, a geografia nada ajudava.
Percebia-se que a vítima seguinte seria a Polónia, país cuja integridade fora garantida pela França e
pela Grã-Bretanha. Mas como é que os Aliados poderiam ir em socorro da Polónia, se a Alemanha a
invadisse, tendo este país de permeio? Não podiam, restando-lhes declarar guerra ao agressor e dar
1 BEEVOR, Antony, A Segunda Guerra Mundial, p. 28.
2
início a um pouco entusiasmado ataque à fronteira oeste alemã, no que passaria à história como a
‘drôle de guerre’. Um mau começo que, no entanto, não impediria nova vitória, em 1945. As
trágicas consequências da emergência na Europa, entre guerras, de duas potências de regimes
ditatoriais e nacionalistas levou os Aliados, desta vez, a uma atitude de grande prudência. Em vez
de punirem a Alemanha e a Itália (e o Japão) com a severidade de Versalhes, procuraram apoiar a
construção de regimes democráticos, o que fizeram com assinalado sucesso.
No final da guerra seguinte – Guerra Fria –, que se concluíra com a vitória política dos aliados da
OTAN, não foi possível aplicar inteiramente a mesma receita, dado que, logo a seguir, se deu o
desmembramento da União Soviética, num processo essencialmente interno e num país de
dimensões imensas como é a Rússia. Mas, simultaneamente, havia um conjunto de países que
estavam na esfera de influência da URSS e que viveriam os novos tempos em modo de libertação
do decadente tutor e de opção pela democracia ocidental. Assim, por decisão própria, além da
integração da Alemanha Oriental na República Federal da Alemanha, optaram por regimes
democráticos a Polónia, a Hungria, a Checoslováquia, a Roménia e a Bulgária, tudo países que já
eram independentes entre 1945 e 1991. Além destes, proclamaram a sua independência da URSS a
Estónia, a Letónia, a Lituânia, a Moldávia, a Bielorrússia e a Ucrânia. Destes, os quatro primeiros
optaram também pela adopção de regimes democráticos de tipo ocidental. E, aqui, de novo se
revelou o ressentimento que grande parte das populações desses países sentia em relação à Rússia.2
Logo em Maio de 1990, o presidente Vaclav Havel, da Checoslováquia, antecipou que a OTAN
poderia ser a semente de um novo sistema de segurança europeu, com a extensão da organização ao
Leste da Europa.3 Mas havia ideias bem diferentes. Henry Kissinger, por exemplo, considerava
como melhor solução que os três países centrais – Checoslováquia, Hungria e Polónia – fossem
declarados neutrais, à semelhança da Áustria. Em 10 de Março de 1992, todas as antigas repúblicas
soviéticas foram admitidas no NACC (North Atlantic Cooperation Council), embora sem qualquer
compromisso de futuro ingresso na OTAN.
Na reunião do Conselho do Atlântico de Junho de 1992, em Oslo, o secretário de Estado dos EUA,
Lawrence Eagleburger, aventurou-se a referir que “deveríamos considerar a possibilidade de
estender a Aliança. Para tal, haverá um certo número de condições, a menos importante das quais
não será o empenho na democracia... mas o essencial não é – e, aqui, eram os EUA a falar – que
haja, presentemente, algum entendimento comum sobre esta matéria, mas os EUA sugeriam que,
futuramente, em devido tempo, a Aliança possa ser alargada.”4
Em Setembro de 1993, a posição do presidente
Yeltsin, da Rússia, favorecia outro tipo de solução
para a segurança dos países da Europa Central (os que
haviam saído da órbita da URSS), oferecendo-lhes
garantias através de uma declaração política ou
mesmo de um tratado de cooperação entre a Federação
Russa e a OTAN. O debate sobre a segurança europeia
iria prosseguir mediante a adopção de diversas
medidas, de que logo a primeira seria a Parceria para
a Paz, envolvendo, praticamente, todos os países
europeus.
2 Excluo deste texto o reflexo da desagregação da URSS nos países da península balcânica, por não estarem
directamente ligados aos acontecimentos em curso.
3 SOLOMON, Gerald B., The NATO Enlargement Debate, 1990-1997: Blessings of Liberty, p. 7.
4 Ibidem, p. 19.
3
Contemporaneamente, um outro acontecimento tem lugar na Europa, com consequências várias,
entre as quais algumas no âmbito da segurança – a assinatura do Tratado da União Europeia, em
Maastricht, a 7 de Fevereiro de 1992, e que entraria em vigor em 1 de Novembro de 1993. Deste
modo, a partir da Comunidade Económica Europeia, constituía-se uma nova unidade política, a
União Europeia (UE), a qual, não sendo especificamente uma aliança no sentido estratégico do
termo, não podia deixar de se considerar um bloco político com obrigações de solidariedade entre
os seus membros, favorecendo a sobreposição de interesses entre UE e OTAN. Todavia, como não
se perspectivava para breve a possibilidade de os países de Leste reunirem as condições de adesão à
UE, começou a germinar a ideia de que, como compensação, talvez pudessem aderir à OTAN, ideia
que os EUA trataram de acarinhar.
Apesar da improbabilidade de uma integração próxima, da parte dos países de Leste não tardaram
os pedidos oficiais de adesão à UE – Hungria e Polónia, em 1994, Roménia, Eslováquia, Estónia,
Lituânia e Bulgária, em 1995, e Eslovénia e República Checa, em 1996. Tratava-se, seguramente,
de uma opção quanto ao futuro destes países – a consolidação de regimes democráticos de tipo
ocidental – e da rejeição inequívoca do seu passado como repúblicas socialistas da órbita da URSS.
Mas seria, também, uma demonstração de ressentimento pela sujeição experimentada entre 1945 e
1990.
Entretanto, em 27 de Maio de 1997, é assinado em Paris, entre a OTAN e a Federação Russa, o
Acto Fundacional de Cooperação Mútua, no qual, entre diversas considerações, se realçava:
• Que a Rússia prosseguia a construção de uma sociedade democrática e a realização da
sua transformação política e económica.
• Que a Rússia estava a contribuir para as forças multinacionais na Bósnia-Herzegovina.
• Que, para assegurar as actividades e objectivos deste Acto e desenvolver abordagens
comuns à segurança europeia, a OTAN e a Rússia criariam o Conselho Conjunto
Permanente OTAN-Rússia.5
• Que as provisões deste Acto não confeririam à OTAN ou à Rússia, de qualquer forma, o
direito de veto às acções da outra parte nem afectariam ou restringiriam os direitos da
OTAN e da Rússia a decisões ou acções independentes.
• Que a Rússia estabeleceria uma Missão na OTAN, encabeçada por um representante com a
categoria de Embaixador. Fariam parte desta Missão um alto representante militar e
respectivo estado-maior, para fins de cooperação militar.
• Que os Estados membros da OTAN reiteravam que não tinham a intenção, nem planos, nem
motivos para a instalação de armas nucleares no território dos novos membros, nem
nenhuma necessidade de mudança na atitude nuclear da OTAN ou da sua política nuclear –
e não previam qualquer futura necessidade de o fazerem.6
Quando, recentemente, eclodiu a crise que conduziu à invasão da Ucrânia pelo exército da Rússia,
foi largamente argumentado que essa atitude teria sido provocada, em grande parte, pela extensão
da OTAN aos países que haviam feito parte da ‘esfera de influência’ soviética, entre 1945 e 1991.
Poucas opiniões têm recordado o que fora estabelecido, por mútuo acordo, no documento atrás
citado, muito especialmente a importância decisiva da democratização da Rússia, que, ao invés, se
foi transformando numa ditadura de feição fascista. Ainda assim, não me foi dado ler nenhuma
opinião que afirmasse, sem rodeios, que a Europa teria vivido feliz e em paz se a única extensão da
OTAN tivesse sido a resultante da unificação da RFA, a que correspondeu a integração na
organização do território da antiga RDA.
5 Substituído pelo Conselho NATO-Rússia (CNR) após os ataques de 11 de Setembro de 2001.
6 https://www.nato.int/cps/en/natohq/official_texts_25468.htm
4
Imaginemos, ainda assim, que, de facto, mais nenhum país do antigo bloco soviético tivesse aderido
à OTAN. Esse facto, no entanto, não alteraria o efeito da maior catástrofe geopolítica do século XX,
como se lhe haveria de referir Vladimir Putin, em Abril de 2005. Não houvera, porém, nenhuma
humilhação decorrente de um qualquer “Tratado de Versalhes” imposto pelos “vencedores”, antes
se verificando uma derrota auto-infligida. O que, obviamente, também não alteraria a vontade dos
nacionalistas russos de tudo fazerem para recuperar a sua ‘esfera de influência’. Logo em 1991, se
haveria de destacar na política russa a figura de Vladimir Zhirinovsky “que construiu o seu apelo
eleitoral na base de uma impenitente xenofobia ao estilo da Velha Rússia, afirmando que o povo
russo se havia tornado na mais humilhada nação do planeta”.7 Logo no ano seguinte, Zhirinovsky
estabeleceu estreitas relações com Jean-Marie Le Pen, dando início a uma ideia de aproximação
entre a Rússia e a extrema-direita europeia, que, ao longo dos anos, se foi reforçando.
Prosseguindo a análise desta hipótese, olhemos para o mapa seguinte, onde destacámos a vermelho
os três países bálticos – Estónia, Letónia e Lituânia –, tornados independentes da Rússia em 1991.
Sendo, nesta hipótese, a Alemanha o país da OTAN mais próximo, como é que se aplicaria a este
conjunto de pequenos países o princípio da “indivisibilidade da segurança” relativamente ao seu
poderoso vizinho russo? Certamente que ninguém se lembraria de tal princípio, ficando os três
países do Báltico inteiramente à mercê da Rússia. Esse cenário tornaria facilmente exequível,
porque não eram países da OTAN, o controlo político da Estónia, Letónia e Lituânia pela Rússia,
constituindo-se, juntamente com a Bielorrússia e Ucrânia, o território-tampão que materializaria a
desejada “esfera de influência” da Rússia (mapa seguinte).
Voltando à realidade do tempo presente, revejamos, agora, o cenário mundial dos anos que
antecederam a actual crise, salientando os seguintes aspectos:
• A facilidade com que, através de operações dissimuladas nas redes sociais, a Rússia tem
influenciado as eleições americanas e o referendo sobre o Brexit;
• A notória falta de vontade política da maior parte dos países europeus em atribuir recursos
financeiros adequados às suas forças armadas;
• A OTAN a ser considerada uma organização obsoleta pelo presidente Trump, e em ‘morte
cerebral’ pelo presidente Macron;
• A progressiva diminuição da presença militar americana na Europa;
• A Europa fragilizada pela saída do Reino Unido da União Europeia;
• Os laços de cumplicidade económica, sempre crescentes, entre a Rússia e a UE, deixando
esta numa forte dependência energética;
• A Alemanha, maior potência económica e populacional da UE, tendo desde há 30 anos
abdicado de ser uma potência militar e, pelo contrário, forjado fortes laços de dependência
económica da Rússia;
7 JUDT, Tony, Postwar, p. 1086.
5
• A fragilidade estratégica dos EUA, expressa na divisão interna entre os dois maiores
partidos, a que se somou o enorme fiasco da retirada do Afeganistão;
• A débil reacção do Ocidente às acções militares da Rússia na Geórgia, no Donbas e à
anexação da Crimeia;
• A simpatia, ainda remanescente no Partido Republicano dos EUA, para com a figura de
Vladimir Putin;
• A notória prioridade que os EUA dão, presentemente, ao que antevêem ser a ameaça da
China.
A partir de 2014, a agudização das relações entre a Rússia e a Ucrânia, com a anexação da Crimeia
e a rebelião no Donbas, levou a OTAN a destacar algumas forças para os países da organização
mais próximos da Rússia, de modo a garantir que qualquer agressão encontrasse no terreno forças
da aliança que garantissem o imediato empenhamento colectivo.
Foi perante este cenário de decadência e fragilidade do Ocidente que o presidente russo, Vladimir
Putin, deu início a uma crise internacional em torno da situação na Ucrânia, alegando, pelo
contrário, que a Rússia se encontrava ameaçada pelos EUA e pela OTAN. Na realidade, Vladimir
Putin aproveitou o momento de debilidade estratégica do Ocidente para se declarar ameaçado. Para
sublinhar, ainda mais, a fraqueza do Ocidente, os dirigentes dos países da OTAN, do Reino Unido e
da UE, apressaram-se a declarar que, em caso de guerra, não enviariam tropas para combater ao
lado das forças ucranianas.
Apesar da incoerência da argumentação, sempre subsistem movimentos de opinião que procuram
transferir as culpas para o agredido, expressando sem cessar a voz do seu infindável ressentimento.
Da acumulação de derrotas – ideológicas, geopolíticas e eleitorais – não retiram outra conclusão
senão a sua sempiterna clarividência.
A História não deixará, porém, de pedir contas pesadas ao Ocidente, embora por razões mais
relacionadas com a cumplicidade económica com a Rússia e a imprudência estratégica a ela
associada. A postura estrategicamente não-interventiva da OTAN, enquanto o mundo assiste, em
directo, ao drama da Ucrânia, vai tornar-se de penosa recordação, a menos que o desenvolvimento
dos acontecimentos venha a revelar um caso ao qual possa aplicar-se o preceito napoleónico que
recomenda:
Nunca interrompas o teu inimigo quando ele estiver a cometer um erro.
David Martelo – 09 de Março de 2022